Em 1961, uma figura sinistra desembarcou em Santiago. Seu nome era Paul Schäfer, um ex-oficial nazista que partira da Alemanha. Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ele trabalhou numa instituição que atendia crianças carentes. Logo, porém, passou a ser perseguido por crimes de guerra e acusações de abusos a menores que estavam sob sua guarda.
Schäfer decidiu fugir para o Chile acompanhado de um grupo de religiosos que ele havia conquistado com a habilidade de quem se transformaria em um carismático pregador.
O que ocorreu depois foi de arrepiar. Schäfer conquistou corações e mentes de alemães e descendentes que viviam no Chile. Com eles, instalou-se na chamada Colonia Dignidad, a 350 km da capital, numa inóspita região do interior da comuna de Parral.
A Colonia Dignidad passou a ser uma seita com suas próprias regras —e elas eram terríveis. Os colonos eram submetidos, todos os dias, a um esquema de trabalho forçado por, no mínimo, 16 horas.
Lá Fora
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Homens e mulheres dormiam em galpões separados, e os filhos não sabiam quem eram seus pais. Poucas crianças de fora entraram na colônia. Às vezes, os líderes adotavam meninos e meninas locais sob o pretexto de que lhes dariam comida e saúde.
Todo tipo de intimidade era proibido: não havia a possibilidade de encontro com amigos, muito menos de namoro. Após a longa jornada de trabalho, ouvia-se a pregação de Schäfer antes do jantar e, depois, todos eram obrigados a ir para a cama.
A colônia era protegida por arames eletrificados. Com a fuga de alguns membros ao longo do tempo, a verdade foi vindo à tona: vítimas contaram em tribunais alemães que ali se praticavam a escravidão, o abuso de menores por parte de Schäfer, além de experimentos médicos e genéticos.
Como se não bastasse, durante a ditadura militar chilena (1973-1990), o local abrigou também prisioneiros políticos e serviu como centro clandestino de torturas —38 ossadas surgiram no começo das investigações. Também foi usado para armazenar armas.
Após a redemocratização do Chile, Schäfer entrou na mira não apenas da Justiça do país, mas também da alemã. Ele, então, refugiou-se na Argentina, mas foi preso e condenado em 2005, apenas cinco anos antes de sua morte.
Muitos governos chilenos da era pós-ditadura não souberam bem o que fazer com esse legado. Até hoje, por exemplo, o local é habitado por ex-colonos que não tinham para onde ir e fundaram ali a Villa Baviera, um hotel e restaurante com direito a tours sinistros pelos túneis clandestinos, incluindo o que ligava o quarto de Schäfer ao dormitório infantil.
Na semana passada, o presidente Gabriel Boric resolveu colocar um ponto final na história. A colônia será transformada em um centro de memória. A maioria dos ex-colonos hoje vive na Alemanha ou em outros locais do Chile. Também recentemente, o governo alemão decidiu reparar financeiramente as vítimas e familiares. Afinal, autoridades do país conheciam a procedência de Schäfer e permitiram que ele saísse do território.
É difícil que esse dinheiro baste para reparar o ocorrido. Conversar com um ex-colono, mesmo já adulto, como já me aconteceu, é como estar diante de uma criança inocente, analfabeta, sem recursos sociais para voltar ao mundo. Além do já proposto por Boric, valeria a pena criar também um centro de reabilitação para que eles possam voltar a viver em sociedade.