Com aliado na Casa Branca, Bukele copia Ortega em El Salvador e aprofunda autoritarismo

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Jornalistas e grupos de direitos humanos estão fugindo de El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele torna a vida de opositores cada vez mais difícil com uma cartilha bem conhecida por países como a Nicarágua de Daniel Ortega, a Hungria de Viktor Orbán e a Rússia de Vladimir Putin.

O mais recente caso é o da Cristosal, uma das mais importantes ONGs do país. A agência de notícias Reuters revelou, na última quinta-feira (17), que o grupo fundado por bispos anglicanos há 25 anos retirou 20 funcionários de El Salvador nas últimas semanas.

A única funcionária que permaneceu está presa —trata-se de Ruth Eleonora López, 47, uma das mais importantes defensoras de direitos humanos do país e vocal crítica à política de segurança do governo. Ela foi detida em maio sob a acusação de ter desviado recursos há mais de uma década, em um dos rompantes de maior repercussão na escalada autoritária de Bukele.

Para especialistas salvadorenhos, o cerceamento é fruto de uma crise de comunicação de Bukele e se tornou possível após o retorno à Casa Branca de Donald Trump, com quem o salvadorenho formou uma aliança que deve impossibilitar investigações sobre um suposto pacto com gangues no país centro-americano.

O pontapé para o aumento da repressão se deu no final de abril, quando Bukele decretou, pela plataforma X, transporte gratuito por sete dias —uma tentativa de resolver a insatisfação da população com um deslizamento de terra em uma estrada.

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Sob a justificativa de que poderiam ter prejuízo diante do que era apenas uma publicação em rede social, diversos empresários do setor de transporte se negaram a cumprir a medida. O governo, então, respondeu com a detenção de ao menos 16 pessoas, dos quais uma delas, José Roberto Jaco, morreu sob custódia do Estado.

Dias depois, uma manifestação pacífica perto da residência do presidente contra uma ordem de despejo foi reprimida pela polícia. O líder comunitário José Ángel Pérez e o advogado Alejandro Henríquez, presentes no ato, também foram presos e, no dia seguinte, Bukele anunciou em represália a chamada Lei de Agentes Estrangeiros.

A regra, que entrou em vigor no começo do mês, taxa em 30% transferências feitas de órgãos internacionais para organizações salvadorenhas e estabelece que essas organizações devem "se abster de realizar atividades que alterem" a ordem pública.

"Essa lei impacta diretamente as organizações que foram classificadas pelo governo de opositoras, inclusive think tanks, universidades e empresas. E pode ser aplicada a pessoas físicas ou jurídicas", afirma Carlos Monterrosa, professor da UCA (Universidade Centro-Americana).

No final de maio, mais de 70 organizações salvadorenhas rechaçaram a lei. A mobilização havia sido suficiente em 2021, quando Bukele tentou passar uma regra semelhante, mas agora não conseguiu se sobrepor a uma Assembleia Legislativa na qual o partido governista tem 57 dos 60 assentos.

O expediente é típico de países que passaram por derivas autoritárias. No caso nicaraguense, por exemplo, a medida foi frutífera para o regime: desde 2018, quando protestos irromperam no país centro-americano, até janeiro deste ano, mais de 5.600 ONGs haviam sido fechadas e, em muitos dos casos, os bens das organizações foram repassados ao Estado.

Sem resistência no Legislativo e no Judiciário, as ONGs e os jornais salvadorenhos eram algumas das últimas entidades críticas ao governo que haviam resistido às investidas do presidente, que goza também de uma conjuntura internacional favorável.

Em abril, Bukele selou uma "aliança de ferro" com Trump ao concordar em receber centenas de imigrantes venezuelanos deportados pelos Estados Unidos no Centro de Confinamento do Terrorismo, a mega prisão salvadorenha que serve de vitrine para a política de encarceramento do país.

De quebra, o acordo livra Bukele de um fantasma que o ronda desde o início de seu governo —o pacto que a gestão fez com as gangues que hoje combate, segundo a imprensa local. Isso porque diversos dos líderes desses grupos criminosos, as chamadas pandillas, estão presos nos EUA, onde a Justiça reuniu importantes evidências sobre o suposto pacto.

Em 2020, durante o primeiro mandato de Trump, o Departamento do Tesouro sancionou dois funcionários do governo de Bukele, um deles de primeiro escalão, por "facilitarem e organizarem uma série de reuniões secretas envolvendo líderes de gangues encarcerados".

Segundo uma reportagem publicada pelo jornal americano The New York Times no final de junho, pessoas com conhecimento da investigação que corre nos EUA alertam para o colapso de um trabalho de anos com a possível extradição de líderes de gangues que estariam colaborando com a apuração.

Toda a crise que Bukele enfrenta nas últimas semanas, aliás, foi permeada por essa suspeita. No início de maio, o jornal El Faro publicou entrevistas com dois ex-pandilleros que confirmaram, em vídeo, o suposto acordo.

"Esse material teve um impacto que surpreendeu até nós mesmos", afirma Carlos Dada, fundador do jornal. "Era muito difícil dizer que tínhamos inventado tudo, porque o próprio vídeo era a prova de que eles estavam livres."

Na sua avaliação, Bukele não conseguiu manejar no âmbito da comunicação as últimas dificuldades que enfrentou —e isso impacta todo o seu governo. "A comunicação é o eixo de sua estratégia política. Por isso, quando ele tem uma crise de comunicação, tem uma crise política", diz.

Uma pesquisa divulgada no início de junho pelo instituto de pesquisa do jornal La Prensa Gráfica mostra que 85,2 % dos salvadorenhos aprovam o governo de Bukele, ante 91% há pouco mais de dois anos.

A confiança nos números, porém, tem caído à medida que outros levantamentos revelam uma possível autocensura no país —segundo uma pesquisa divulgada em maio pela UCA, 57,9% dos salvadorenhos temem criticar o líder e sofrer consequências negativas.

Para Leslie Schuld, diretora do Centro de Intercâmbio e Solidariedade, uma ONG de El Salvador, a volta de Trump ao poder deu a Bukele sinal verde para violar direitos humanos e consolidar seu poder.

"A pressão por respeito às liberdades democráticas evaporou com o novo governo dos EUA", afirma. Segundo ela, o presidente está usando esse cheque em branco por ver seu poder ameaçado. "Ele é especialista em controlar a narrativa, mas está perdendo o controle diante das críticas crescentes."

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