Uma medida adotada pelo governo para reforçar a arrecadação federal e cumprir as metas fiscais tem contribuído para turbinar os honorários da AGU (Advocacia-Geral da União), espécie de bônus bilionário pago a cerca de 12 mil membros da carreira.
A lei que criou a remuneração extra da AGU, em 2016, incluiu na base de cálculo não só os honorários recebidos pelos advogados quando a União vence uma disputa no Judiciário mas também uma fatia dos encargos cobrados sobre valores inscritos na dívida ativa da União, independentemente da existência ou não de ação judicial.
A dívida ativa reúne tributos, contribuições previdenciárias e outros tipos de débito em situação de inadimplência. A cobrança fica a cargo da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), órgão jurídico do Ministério da Fazenda que também é vinculado à AGU.
Com o aval do ministro Fernando Haddad (Fazenda), a PGFN tem recorrido cada vez mais às chamadas transações tributárias para fechar acordos de regularização com os devedores, mediante a concessão de descontos e condições de parcelamento mais flexíveis. A medida deu impulso à arrecadação federal e também aos honorários.
No ano passado, as transações renderam R$ 34,1 bilhões em receitas para o governo, quase o dobro do obtido em 2023 (R$ 20,7 bilhões) e muito acima do resultado observado em 2020, quando a realização dos acordos ficou mais fácil. Naquele ano, a arrecadação foi de apenas R$ 1,7 bilhão, em valores nominais.
No mesmo período, os honorários também subiram de forma significativa, de R$ 1,06 bilhão em 2020 para R$ 3,73 bilhões no ano passado. Desse valor, R$ 3,07 bilhões vieram da cobrança dos encargos, segundo levantamento feito pela Folha a partir de dados do Portal da Transparência.
Pela lei, até 75% dos encargos da dívida ativa são repassados ao CCHA (Conselho Curador dos Honorários Advocatícios), instituição de natureza privada responsável pela distribuição do bônus a advogados da AGU e procuradores da PGF (Procuradoria-Geral Federal), da PGFN e do Banco Central.
Os dados mostram que essa é a principal fonte de recursos da entidade. Dos R$ 15,8 bilhões destinados aos honorários entre 2017 e 2025, R$ 11,8 bilhões vieram dos encargos (74,7% do total).
O acordo bilionário de transação tributária com a Petrobras, selado em junho do ano passado, é um exemplo de como as transações ajudam a turbinar a remuneração extra dos advogados.
A negociação, celebrada pela equipe de Haddad por ajudar a fechar as contas do ano, envolveu um pagamento total de R$ 19,8 bilhões, dos quais R$ 11,85 bilhões em dinheiro, de forma parcelada.
O valor de entrada, R$ 3,57 bilhões, foi quitado em 30 de junho. Em 18 de julho de 2024, o conselho de honorários recebeu o maior repasse individual de recursos até hoje: R$ 417,7 milhões, correspondentes a uma fatia de 67,5% sobre encargos recolhidos no mês anterior —justamente quando houve o acerto com a estatal.
O acordo da Petrobras previa mais seis parcelas, pagas entre julho e dezembro de 2024. Entre agosto de 2024 e janeiro de 2025, a média mensal de encargos repassados ao CCHA subiu a R$ 326,63 milhões, bem acima da média de R$ 160 milhões observada entre janeiro e junho, antes da negociação.
Após a quitação integral do acordo, a média de envio de encargos voltou a cair. De fevereiro a junho deste ano, o valor mensal ficou na casa dos R$ 239 milhões.
A reportagem solicitou ao CCHA esclarecimentos sobre o peso das transações no pagamento de honorários, mas a entidade disse que a gestão do sistema está sob responsabilidade da AGU e da PGFN.
Procurada, a PGFN forneceu dados sobre a arrecadação com as transações —uma política que virou vitrine do órgão e da Fazenda—, mas não respondeu sobre o peso delas na remuneração extra da advocacia. A AGU não se manifestou.
Técnicos do Executivo e do Legislativo afirmam que a transação tributária é um mecanismo útil para a administração pública. O problema, na avaliação desses interlocutores, está no repasse de parte dos encargos para os honorários, algo que não encontra paralelo na advocacia privada.
Para duas das pessoas ouvidas, que falaram sob condição de anonimato, o desenho está permitindo que uma política pública seja usada para o enriquecimento privado desses servidores.
Integrantes das carreiras jurídicas, por sua vez, argumentam que a inclusão dos encargos é devida porque os procuradores precisam atuar na cobrança dos valores, muitas vezes mediante a apresentação de ações de execução fiscal na Justiça.
Ao perceber as vantagens do modelo, a Receita Federal conseguiu, em 2022, autorização para fazer suas próprias transações tributárias. A categoria recebe um bônus de produtividade, mas os detalhes desses repasses não são públicos.
Como mostrou a Folha, na AGU há casos de membros da carreira que receberam R$ 547 mil de honorários em um único mês. Há uma série de entendimentos e verbas extras aprovadas em pareceres sigilosos do CCHA, formado por representantes das carreiras jurídicas.
Só em janeiro deste ano, o conselho distribuiu R$ 1,7 bilhão, o maior pagamento já registrado. Na ocasião, o chefe da AGU, ministro Jorge Messias, embolsou R$ 193,2 milhões. Ex-membros do órgão também foram contemplados por verbas retroativas.
Para um integrante da equipe econômica, a situação evidencia uma distorção, já que o pagamento recorde de honorários ocorre ao mesmo tempo que a União acumula uma fatura cada vez maior de precatórios (sentenças judiciais). A crítica nos bastidores é que, quando o governo sai ganhando, os advogados e procuradores faturam uma parte, mas, quando a União perde, ela arca sozinha com os custos da condenação.
Simulações feitas por técnicos para subsidiar as discussões da reforma administrativa, sob relatoria do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), indicam que, seguindo a tendência atual, o valor dos honorários pode chegar a R$ 14,5 bilhões em 2030, o que renderia um pagamento individual de R$ 5,6 milhões a cada membro da AGU.
A expansão dos valores, por outro lado, tem gerado um desafio aos advogados. Em 2020, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que a soma do salário e dos honorários não poderia ultrapassar o teto do funcionalismo, hoje em R$ 46.366,19 ao mês.
Até agora, o CCHA tem recorrido aos retroativos para driblar a regra. Mas o risco de esgotamento dessa via inspira outras estratégias.
Em duas ocasiões, em 2022 e 2025, membros da AGU tentaram articular emendas a propostas em tramitação para autorizar que o CCHA faça aportes na Funpresp, o fundo de pensão dos servidores do Executivo. Diante da impossibilidade de pagar mais agora, o objetivo seria engordar a poupança desses servidores para o momento da aposentadoria. A medida acabou não avançando no Congresso.