A regra é clara: se o bar tem "boteco" no nome, dificilmente boteco será.
Porque o boteco raiz, pé-sujo de fato, muitas vezes nem nome tem. Não tem placa na porta, e os clientes o chamam pelo nome do dono —que atende atrás do balcão com avental puído e pau com prego para abrir a tampa da cerveja.
Ocorre que esse tipo de bar, salvo exceções, tem público cativo e limitado: são os aposentados do dominó, os moradores do bairro, os trabalhadores em busca de um almoço gostoso e barato.
Passar o dia enxugando copos e enxotando bêbados não é o sonho do jovem empreendedor urbano, mesmo aquele que frequenta boteco e se torna dono de boteco. Ou de algo parecido.
Os bares dessa geração jovem servem comida de boteco, vendem cerveja em garrafas de 600 mililitros, rabo de galo e outros birinaites botequeiros. Têm ambiente despojado, não raro bagunçado de propósito.
São uma espécie de cosplay da mercearia com balcão de fórmica, estufa com ovo colorido, tremoço e a alerta de que só compram fiado maiores de 80 anos acompanhados dos pais.
Essa nova onda de bar, que em São Paulo faz sucesso em Santa Cecília, Pinheiros e na Barra Funda, incorpora conceitos alheios ao universo das biroscas. Têm sócio investidor, gestão profissional, bartender e chef de cozinha. E branding, que definitivamente não orna com boteco raiz.
"O boteco de verdade brilha no improvável, no improviso", diz o comediante Francisco Cechin Junior, mais conhecido por seu personagem das redes sociais, Chico, o Vendedor Raiz.
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Em seus vídeos, o gaúcho Chico faz review ("ou análise, para ti que não fala inglês") dos botequins mais singulares do interior. Sempre toma uma cachaça de ervas, busca se enturmar com "os guri" e anota cada detalhe que "conta ponto" para uma avaliação positiva do estabelecimento.
O que conta ponto num boteco, Chico? À paisana, de moletom num quarto de hotel, Cechin matuta com a mão no queixo antes de citar um exemplo. "Conta ponto quando tem uma gaiola de passarinho em cima do balcão", diz, "porque deu na telha do dono, não porque ele esteja preocupado com design de interiores."
O jornalista mineiro Daniel Neto, o Nenel, que no Instagram visita botecos de Belo Horizonte e alhures para o perfil Baixa Gastronomia, irrita-se com bares que abrem comandas no CPF do cliente —e com isso acessam dados pessoais como número de celular e email. "Não dá, boteco é o antônimo da burocracia", reclama.
"A presença do dono conta ponto", opina Chico. "Se ele precisar sair, põe um cliente para atender mesa e dar troco."
No boteco hipster, tudo é planejado, do cardápio ao lettering —caligrafia artística— inspirado em cartazes de supermercado ou para-choques de caminhão. Ambiente, serviço, comes e bebes emulam algo popular, anacrônico.
Daí advêm o bolovo autoral e a mobília cuidadosamente simplória de algumas casas dessa nova onda. Bares que emulam botecos não são exatamente uma novidade. Eles surgiram no fim do século passado, como forma de atrair clientela mais ampla e abonada que nunca poria os pés num sujinho autêntico. "Boteco era uma coisa negativa", conta Kadu Tomé, do bar Bracarense, no Rio.
Aquela primeira leva popularizou o termo "boteco chique", categoria que segue saudável e tem como representantes máximos as redes Pirajá, de São Paulo, e Belmonte, do Rio. Enquanto o boteco chique veio para subir o sarrafo em quesitos como ambiente e serviço, o hipster vai na contramão, com informalidade calculada.
A trajetória do Bracarense ilustra como essas categorias —boteco raiz, hipster ou chique— são móveis e têm fronteiras tênues.
O bar se limitava a um balcão apertado, uma chopeira, uma estufa, cozinha e banheiro de questionável salubridade. Os clientes decidiram ocupar a calçada com mesas de barril de chope e cadeira de praia que levavam —o boteco fica perto da orla do Leblon.
Depois de sucessivas reformas, o Bracarense ganhou instalações dignas e gestão profissional. Ainda é um boteco? Talvez sim, talvez não, mas isso realmente importa? O movimento contrário também ocorre: é comum um bar conceitual cair no gosto de determinado público e, depois, desenvolver tradição e alma própria. Mesmo que comece disfarçado de boteco.
Veja, a seguir, uma seleção com botecos raiz e hipster para conhecer em São Paulo.
BOTECOS RAIZ
A Juriti
Um bar muito velho, fundado em 1957, com muitos velhos de ambos os lados do balcão, é patrimônio do Cambuci. Batidas e acepipes estão nas estufas quente e fria. No salão que estacionou no tempo, o espetáculo fica por conta do preparo do petisco Joana d’Arc (R$ 60), calabresa incinerada no álcool. A rã à doré (R$ 40), para quem curte, é outro de destaque.
R. Amarante, 31, Cambuci, região central, @ajuriti__oficial
Bar do Luiz Nozoie
Após a partida do seu Luiz, a família Nozoie segue com a banda afinadíssima neste nipo-boteco que faz gente da cidade toda se deslocar até a Saúde. Chegue, peça uma bebida e analise com calma a oferta de petiscos frios sobre o balcão —o jiló com cebola (R$ 10 a unidade) é um assassino de preconceitos. Algumas preciosidades, como o espeto de peixe-espada (R$ 12) e o bolinho de milho com queijo (R$ 8), só saem da cozinha em datas meio aleatórias.
Av. do Cursino, 1210, Bosque da Saúde, região sul, @bardoluiznozoie
Botequim do Hugo
Exceção à regra, o Hugo merece muito o botequim do nome —ainda mais surpreendente se levarmos em conta que está no Itaim Bibi. Fica numa casa antiga (mercearia dos anos 1920) cheia de quinquilharias curiosas. Se você sentir certo desequilíbrio no banheiro, não é só porque bebeu demais: o chão é mesmo inclinado. Peça o buraco quente (R$ 16), com ótimo refogado de carne moída.
R. Pedroso Alvarenga, 1014, Itaim Bibi, região oeste, @botequimdohugo
Casa do Norte do Seu Gabin
Os clientes do Seu Gabin, quando o caos se instala no bar, abrem sem cerimônia o freezer para pegar cerveja —para eles ou outros fregueses que ainda não sacaram o esquema do lugar. Caiu nas graças da galera alternativa do Sumaré, que aluga o espaço para festas com discotecagem. A programação está no Instagram da casa.
R. Aimberê, 1146, Sumaré, região oeste, @casadonortedoseugabin
Giba’s Bar
Fica bem em frente à lendária Juriti e, diferentemente do vizinho, serve refeições —pratos-feitos e o trivial do almoço. Fuja do triste puxadinho com mesas para grupos. O lance é bebericar em pé no lindo balcão do ambiente principal, com azulejos originais do tempo do onça. Se cansar, pegue uma mesa na calçada e observe o ritmo quase interiorano do Cambuci.
Av. Lins de Vasconcelos, 1.113, Cambuci, região central, @gibasbarerestauranteoficial
Lanches Canetão – Bar do Bigode
O corintiano Bigode, ou Miranda, toca este boteco roots demais em meio aos predinhos da Hípica —quadras de Pinheiros com edifícios residenciais tombados pelo patrimônio histórico. Cerveja gelada, torresmo na estufa e amendoim são os combustíveis do pessoal cabeça que frequenta o bar. A batata frita pelo próprio Bigode é um negócio sério de bom.
R. Simão Álvares, 285, Pinheiros, região oeste, @lanchescanetao
Kintaro
Não é exatamente um izakaya, é uma porta na Liberdade em que a botecagem brasileira se mescla perfeitamente com a petiscaria à japonesa. Tome cerveja gelada no minúsculo balcão ou nas mesas na calçada. A berinjela ao missô (R$ 20) e o frango frito (R$ 20) valem o perrengue. Evite a lotação de sábados e pontes de feriado.
R. Tomás Gonzaga, 57, Liberdade, região central, @izakaya_kintaro
BOTECOS HIPSTER
Bagaceira
A esquina das ruas Frederico Abranches e Jesuíno Pascoal vira um mar de santaceciliers por causa do bar. Dois Thiagos (o chef Maeda e o bartender Pereira) tocam o endereço que, com sucesso, emula alma de boteco com parede calculadamente descascada, barulho e cervejas de 600 ml. Obrigatório provar o bolovo autoral de morcilla e copa-lombo (R$ 23), que já virou clássico paulistano.
R. Frederico Abranches, 197, Santa Cecília, região central, @barbagaceira
Boteco de Manu
A talentosa Manuelle Ferraz, nativa do Vale do Jequitinhonha, adaptou a culinária fronteiriça do restaurante Baianeira para este bar à beira da avenida Pacaembu. Tem carne de sol (R$ 59) e linguiça (R$ 39). O que não tem é muito espaço interno, então as mesas ficam espalhadas numa calçada larga, um tanto árida e barulhenta por causa da passagem de carros.
R. do Lavradio, 235, Barra Funda, região oeste, @botecodemanu
De Primeira Botequim
Para não amarrar tromba nesta esquina dos destroços daquilo que um dia foi a Vila Madalena, o botequeiro precisa entender uma coisa: os pés-sujos são apenas inspiração para o local. É, afinal, um bar que serve ostras com vinagrete de manga. O pastel de carne, queijo e ovo faz bonito, assim como a caipirinha com coentro (R$ 32) —sim, rapaziada!
R. Aspicuelta, 271, Vila Madalena, região oeste, @deprimeira.botequim
Galo
Um dos exemplos mais didáticos de boteco hipster, pegou o sobrado que já foi de um restaurante, arrancou parcialmente o reboco e ocupou a calçada com mesas e cadeiras humildes onde serve pastéis (R$ 32) e caldos (R$ 18). Clientela jovem, num canto de Pinheiros que fica tomado por carrinhos que vendem bebida suspeita.
R. Álvaro Anes, 88, Pinheiros, região oeste, @galo_________
NoBar
Gustavo Rozzino, chef do TonTon, espalhou as asas sobre imóveis das redondezas até arrematar o "bar e lanches" vizinho. Preservou mais ou menos a aparência original da birosca. Oferece cerveja grande a preço de boteco e comida trivial caprichadaça para clientes bem-nascidos. Espetacular, o x-filé (R$ 45) desperta ideias perturbadoras sobre gourmetização e gentrificação.
R. Guarará, 212, Jardim Paulista, região oeste, @nobar.sp
Ó Pro Cê Vê
Bar temático em Santa Cecília, inspirado nos botecos de Belo Horizonte, com comandas individuais no CPF do cliente. A descrição pode não ser promissora, mas a execução da comida desarma a alma mais cricri. Pão de queijo com mais queijo e pernil (R$ 25). Chips de jiló (R$ 9). Tropeiro (R$ 18) apropriado. Prove a sambiquira de frango (R$ 15).
R. Jaguaribe, 522, Santa Cecília, região central, @opcv.uai
Sururu
Com um ano recém-completado na Barra Funda, replica nos frutos do mar a fórmula vencedora do Moela, seu irmão mais velho: cerveja de garrafa e boas comidas num ambiente espartanamente simples. Os agitos atraem multidões, que os frequentadores parecem lidar como algo intrínseco à própria existência. Lula frita (R$ 58) sequinha, na textura ideal.
R. Barra Funda, 197, Barra Funda, região oeste, @obarsururu