Há 10 anos, ao assistir às imagens da lama que tomou Mariana, o Brasil descobriu as consequências de quando descaso e negligência se encontram. A tragédia, por si só, deveria ter provocado mudanças profundas na gestão, governança e transparência das barragens. Não foi o que ocorreu. Quatro anos depois, em 2019, a história se repetiu de forma ainda mais trágica em Brumadinho: 272 mortos, um povoado soterrado e mais um rio contaminado por metais pesados.
Era de se esperar que medidas fossem adotadas para evitar novos desastres. De fato, em 2020, o Congresso aprovou a Lei 14.066, que reforçou o marco regulatório, estabelecendo multas e mais deveres aos agentes. Mas até dezembro de 2024, apenas metade das 28.086 barragens cadastradas no sistema nacional havia passado por avaliação. Dessas, só 1.463 têm Plano de Segurança da Barragem cadastrado, e apenas 601 foram inspecionadas em 2024 —reflexo da escassez de pessoal.
Neste cenário de incapacidade operacional do Estado, a participação ativa da sociedade não deveria apenas ser respeitada, mas muito bem-vinda. No entanto, a Agência Nacional de Mineração (ANM) parece fazer o oposto. Respostas enviadas ao Fórum Permanente São Francisco (FPSF) e compartilhadas com esta coluna são revoltantes. Questionada via Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre os Relatórios de Inspeção de Segurança Regular —documentos essenciais para verificar a estabilidade das estruturas das barragens— a ANM disse não possuir as informações. Alegou que os relatórios "eventualmente recebidos pela ANM ocorrem fora do sistema, no contexto de ações de fiscalização específicas".
"Eventualmente" não deveria existir no vocabulário de uma agência responsável pela segurança de milhões de pessoas e ecossistemas inteiros. Para piorar, a ANM ainda se apoia em um jogo de palavras risível: afirma que a lei exige que os relatórios "estejam disponíveis", mas não que sejam "apresentados".
Também absurda é a justificativa de que muitos desses documentos trazem "cláusulas de sigilo industrial e propriedade intelectual". Como se o risco de rompimento de uma barragem fosse informação estratégica de mercado. Mais grave ainda é a orientação para que cidadãos procurem as próprias empresas, eximindo-se de seu papel fundamental de garantir o acesso e mediar essa relação em nome do interesse público. "Essa omissão protege o empreendedor para ele fazer o que quiser", afirma Daniel Neri, professor do IFMG (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais).
A cereja do bolo é a frase final da Superintendência de Segurança de Barragens de Mineração: "nos parece estranho o inconformismo com o fato de a ANM não possuir a informação solicitada". Estranho, na verdade, é uma agência reguladora não deter nem fornecer informações básicas que justificam a sua própria razão de existir.
Em suma, a ANM fiscalizou menos de 3% das barragens no último ano, confia em autodeclarações dos próprios empreendedores, não centraliza os dados que recebe (quando recebe) e ainda impede que a sociedade civil exerça o controle que ela mesma não parece ser capaz de fazer. É uma afronta à segurança pública e ambiental.
É urgente que o Ministério de Minas e Energia e o Ministério Público Federal exijam que a ANM publique imediatamente todos os relatórios que já possui, crie um repositório central, obrigue o envio padronizado dos dados por parte das empresas e os disponibilize em transparência ativa.
Essa postura institucional viola frontalmente os princípios da transparência, prevenção e precaução, descumpre as legislações específicas para a temática além de pressupostos básicos da Política Nacional do Meio Ambiente e da Lei de Acesso à Informação. Não é possível admitir que, omisso, o Estado siga repetindo erros que tornaram possíveis desastres como Mariana e Brumadinho.