Campos úmidos do cerrado são legalmente protegidos, mas estão esquecidos na prática

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Apesar de sua importância para a segurança hídrica e de estarem protegidos por lei, os olhos d’água difusos —principais responsáveis pela formação dos campos úmidos do cerrado— continuam sistematicamente negligenciados por políticas públicas, consultores ambientais, proprietários rurais e órgãos de fiscalização. A desconexão entre a linguagem técnica e a jurídica é apontada por um grupo de pesquisadores brasileiros como uma das causas centrais dessa invisibilidade institucional.

Olhos d’água difusos são áreas onde a água subterrânea aflora de forma espalhada e contínua, sem formar um ponto único de exsudação ("subida" do líquido). Em vez de emergir em um local bem definido, como ocorre nos olhos d’água pontuais, esses fluxos se distribuem por superfícies amplas, formando áreas encharcadas com solos permanentemente ou sazonalmente úmidos, mesmo sem lâmina d’água visível.

Artigo produzido pelo grupo foi publicado na revista Perspectives in Ecology and Conservation. "O que está faltando para proteção dessas áreas não é legislação, mas a aplicação da lei", diz Alessandra Bassani, primeira autora do artigo.

"A Lei de Proteção da Vegetação Nativa [12.651/2012] prevê a proteção dos ‘olhos d’água’, definidos como afloramentos naturais do lençol freático, mesmo que não formem cursos d’água e mesmo que não sejam permanentes. Essa definição se aplica diretamente a áreas úmidas não ripárias —ou seja, que não se situam às margens de rios, e que estão presentes em todos os biomas brasileiros. O problema é que essas áreas raramente são reconhecidas como ‘olhos d’água difusos’, porque olhos d’água e nascentes ainda são indevidamente tratados na prática como sinônimos", explica Bassani.

"Além disso, persiste um viés institucional e técnico que direciona a proteção apenas para as águas superficiais visíveis, como aquelas associadas a margens de rios ou a olhos d’água pontuais, caracterizados por um único ponto de exsudação da água subterrânea e pela presença de lâmina d’água aparente", complementa.

Como resultado, ecossistemas que deveriam ser intocáveis vêm sendo sistematicamente ignorados em mapas, licenciamentos e autorizações de uso da terra –inclusive para desmatamento, drenagem e instalação de pivôs centrais para irrigação. Assim, entre 1985 e 2020 mais de 580 mil hectares de vegetação nativa em áreas úmidas do errado foram perdidos, 61% deles convertidos para uso agropecuário. A substituição de vegetação nativa campestre por pastagens e lavouras interfere diretamente na recarga dos aquíferos e no fluxo de base dos rios.

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Segundo Bassani, a lei 12.651 classifica como Área de Preservação Permanente (conhecida pela sigla APP) todo afloramento natural do lençol freático, incluindo os olhos d’água difusos, que dão origem a áreas de solo permanentemente ou sazonalmente saturado. A proteção se aplica diretamente aos campos úmidos, que são importantes reservatórios naturais de água e fundamentais para a manutenção do fluxo de rios por águas subterrâneas.

No entanto, essas áreas seguem desprotegidas na prática porque não são reconhecidas como olhos d’água, já que a terminologia legal não vem sendo corretamente aplicada em mapeamentos, licenciamentos e fiscalizações. "As veredas são as únicas formações campestres expressamente reconhecidas na prática como APP hídrica, sendo efetivamente protegidas com base na presença de buritis como indicador, enquanto todas as demais áreas úmidas não ripárias [que não estão diretamente associadas a rios ou córregos] seguem desprotegidas", aponta Bassani.

Inicialmente limitada apenas a nascentes e olhos d’água perenes, a proteção foi estendida pelo Supremo Tribunal Federal em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.903/2019) às áreas ao redor de nascentes e aos olhos d’água sazonais. A legislação distingue "nascentes" (deságue pontual com fluxo suficiente para formar cursos d’água) de "olhos d’água" (afloramentos do lençol freático sem necessariamente formar um curso hídrico).

A maioria dos campos úmidos do cerrado é formada por olhos d’água difusos –surgências lentas, muitas vezes invisíveis a olho nu, que saturam o solo de forma perene ou sazonal. Porém a expressão "olhos d’água" raramente é usada para descrever esse tipo de formação vegetal. E isso vem facilitando o descumprimento da lei.

Um exemplo é o Cadastro Ambiental Rural –sistema governamental de monitoramento do uso do solo–, que agrupa nascentes e olhos d’água em uma única categoria, como se fossem a mesma coisa, enfraquecendo a implementação das proteções legais existentes para os campos úmidos.

No cerrado, as áreas úmidas não ripárias (campos limpos úmidos, campos sujos úmidos, veredas e campos de murundus) exercem funções hidrológicas cruciais: armazenam água da chuva e garantem a liberação contínua de água aos cursos fluviais, mesmo durante períodos de seca severa. Os campos úmidos sazonais, cuja superfície seca durante parte do ano, também são importantes como zonas de recarga dos aquíferos.

"Esses ecossistemas desempenham papel central na resiliência hídrica das bacias hidrográficas, além de contribuírem para o estoque de carbono e a biodiversidade regional. O cerrado é considerado a ‘caixa d’água do Brasil’ por abrigar nascentes e olhos d’agua que formam as principais bacias hidrográficas do país, incluindo as que alimentam o pantanal e a amazônia", afirma Rafael Silva Oliveira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas, orientador do doutorado de Bassani e autor sênior do artigo.

A supressão e drenagem de olhos d’água difusos já produzem efeitos como escassez de água, redução de vazão em cursos d’água e comprometimento do abastecimento para comunidades e agricultura. "A proteção dos olhos d’água difusos é crucial para evitar o colapso hidrológico do cerrado, do pantanal e de vários rios que formam a bacia amazônica", alerta Oliveira.

Diante do cenário atual, o artigo propõe duas ações prioritárias. A primeira é a adoção consistente da terminologia "olhos d’água" e "olhos d’água difusos", em pesquisas, relatórios técnicos, pareceres de licenciamento e práticas de manejo para garantir a aplicação da lei. A segunda é o desenvolvimento de mapas de alta resolução, baseados em critérios eco-hidrológicos, que permitam diferenciar áreas úmidas ripárias das não ripárias. Técnicas como sensoriamento remoto, uso de piezômetros (instrumentos utilizados para medir a pressão da água) e identificação de solos hidromórficos já estão disponíveis, mas seu emprego não é institucionalizado.

Os pesquisadores também sugerem métodos simples de campo, como escavar o solo a 30 centímetros de profundidade no auge da estação chuvosa. A presença de água indica saturação pelo lençol freático. Além disso, certas espécies vegetais, como Xyris, Utricularia e Drosera, são indicadoras confiáveis de ambientes alimentados por olhos d’água.

Além de Bassani e Oliveira, ambos sediados na Unicamp, o artigo teve a participação de pesquisadores da Universidade de Brasília, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade Federal de Santa Catarina. Os autores argumentam que aplicar corretamente a lei 12.651 é um passo decisivo para garantir a segurança hídrica e climática nacional.

"A legislação protege as áreas onde o lençol freático aflora, como os olhos d’água difusos; portanto, qualquer intervenção de drenagem nessas áreas é ilegal, uma vez que visa justamente eliminar o afloramento de água subterrânea que caracteriza essas formações como protegidas por lei. O Brasil tem a rara oportunidade de alinhar ciência e política pública para proteger ecossistemas essenciais para segurança hídrica, já reconhecidos por lei, mas esquecidos na prática", conclui Bassani.

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