Enfim, um caminho possível para o jornalismo

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À primeira vista, as novas tecnologias são uma dor de cabeça para os jornais tradicionais. Experimente programar um agente de inteligência artificial para lhe entregar, todos os dias às 6h40, enquanto leva a xícara de café quente aos lábios, um relatório jornalístico sobre Jair Bolsonaro. Não uma seleção aleatória de manchetes, mas um recorte orientado por critérios algorítmicos: relevância informativa, índice de confiabilidade, diversidade ideológica, multiplicidade de idiomas.

A máquina vasculha jornais, TVs e rádios, newsletters especializadas, blogs opinativos, perfis de relevância variável nas redes sociais. O que chega até você já não é notícia no sentido clássico, mas uma construção informacional sob medida, ajustada ao seu histórico de leitura, ao seu vocabulário, à sua tolerância ao dissenso. Parece futuro, mas já é presente. A inteligência artificial reorganiza o ecossistema informativo, deslocando o poder editorial do coletivo para o indivíduo.

As máquinas de inteligência artificial extraem esse conteúdo sem custo e, muitas vezes, sem atribuição. Atualmente, os jornais já são diluídos por plataformas agregadoras como o Google ou Facebook (Meta) que lhes drenam receitas publicitárias. Mas a internet, pelo menos, ainda leva algum tráfego aos jornais. A inteligência artificial, não. Os textos servem de matéria-prima para modelos estatísticos que absorvem estilo, argumento e vocabulário, mas obscurecem a autoria. O conteúdo serve para treinar os próprios sistemas que o substituem, sem compensação e sem reconhecimento. As máquinas consomem tudo o que lhes aparece pela frente.

Quando qualquer pessoa pode gerar conteúdo legível e verossímil sem custos, o valor econômico da publicação tradicional entra em crise. O modelo convencional dos jornais, ancorado no controle da criação e da distribuição massificada, na venda publicitária e no trabalho especializado das redações, torna-se inviável num ambiente mediado por inteligência artificial. A escassez que sustentava o valor da informação foi substituída pela abundância maquínica. O capital simbólico do jornalismo já não basta. Sem uma reestruturação do modelo econômico e da sua função pública, a extinção torna-se um processo inevitável.

"Mas as leis de copyright podem impedir as máquinas de nos roubarem os conteúdos", dirão alguns diretores de jornais sem sentir a água a chegar ao joelho. No entanto, os tribunais americanos têm sido claros: se a inteligência artificial gera novos textos, ainda que com base nos originais, ela está criando algo "transformado", e isso é protegido pela lei de "fair use". Em outras palavras, o roubo não é considerado roubo, sentenciaram os juízes William Alsup e Vince Chhabria, em processos recentes contra a Anthropic e a Meta, respectivamente. Como provar que alguém deixou de pagar por algo que nunca soube que estava a consumir?

Mas há uma esperança. Em 1º de julho, a empresa americana Cloudflare, que protege parte significativa da infraestrutura digital global, inclusive sites jornalísticos, propôs um novo modelo de remuneração: pay-per-crawl, acionado pelo protocolo HTTP 402, até agora praticamente inexplorado. Funciona assim: cada vez que um robô de IA quiser acessar e extrair o conteúdo de um site, terá de pagar por isso.

Mais do que cobrar por visita, a Cloudflare —cuja sede europeia fica em Lisboa, num prédio futurista às margens do Tejo— quer criar um mercado baseado na qualidade informativa do conteúdo oferecido às IAs. Textos analíticos, singulares, que preenchem lacunas cognitivas e não se confundem com o ruído repetitivo e industrializado da internet, seriam mais bem remunerados por serem mais úteis às máquinas. Os jornais passariam a ser pagos não por tráfego, mas pela inteligência que produzem. E os seus consumidores já não seriam os leitores, mas os modelos. O novo formato foi explicado pelo CEO da Cloudfare neste blog.

Para distinguir o belo do feio, a Cloudflare terá de adotar algum modelo de avaliação de qualidade de notícias, como o NewsGuard, The Trust Project (a Folha é parceira) ou o Newspaper Impact Rating , que criei em 2019.

O jornalismo tradicional poderá sobreviver dentro do novo sistema. Mas terá competição. Tal como aconteceu com as marcas nativas do digital nas plataformas sociais, surgirão novos produtores de conteúdo editorial, concebidos desde a origem para este ecossistema algorítmico.

Isso não implica renunciar ao leitor humano. Pelo contrário: a outra saída para os jornais é cultivar comunidades, como destaca o tecnólogo Ben Thompson, autor da célebre newsletter Stratechery. Não se trata de atingir muitos, mas de reunir os poucos que compartilham referências, códigos e expectativas. Uma espécie de Esporte Clube Pinheiros ou Clube Hebraica aplicado à informação. Numa era em que o conteúdo é sintetizado por máquinas e distribuído de forma atomizada, a experiência humana partilhada torna-se um bem escasso.

As empresas que hoje conhecemos como editoras de jornais tenderão a se tornar curadoras de conteúdos que funcionam como referências simbólicas e afetivas. Suas publicações passarão a ser espaços de mediação cultural, onde a notícia é apenas a camada visível de vínculos mais profundos. Não venderão apenas informação, mas pertença. E como todo bem escasso, isso terá valor.

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