A publicação recente de estudos contraditórios entre si sobre qual pode ser o número real de mortos no conflito de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza alimenta uma guerra de versões travada entre os estudiosos que se debruçam regularmente sobre o tema.
Um trabalho chefiado por Michael Spagat, economista da Universidade de Londres, publicado no último dia 23 estimou o número de mortes em Gaza de 7 de outubro de 2023 até janeiro deste ano em cerca de 75 mil —65% maior do que o dado oficial para o período, de 45 mil. O estudo calcula ainda que 56% das vítimas são mulheres, crianças ou idosos.
Outro, escrito pelo professor de epidemiologia matemática Lewi Stone, do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, e pelo professor de direito Gregory Rose, da Universidade de Wollongong, ambos na Austrália, afirma que há problemas tão sérios na contagem dos mortos feita pelo Ministério da Saúde de Gaza que esses dados deveriam ser desconsiderados, que estão provavelmente inflados e que há amplas evidências de que Israel atua para tentar proteger civis na guerra.
O estudo de Spagat utiliza dados coletados em campo —isto é, não trabalha com a contagem oficial do Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, como fizeram análises anteriores. Em vez disso, analisa os resultados de uma das primeiras pesquisas feitas presencialmente com famílias do território palestino, conduzida pelo Centro Palestino para Pesquisas de Opinião e Política (PCPSR, na sigla em inglês), que funciona em Ramallah, na Cisjordânia.
O levantamento representativo visitou 2.000 domicílios em Gaza, incluindo barracas e famílias vivendo em campos de refugiados, e fez perguntas sobre o paradeiro de quase 10 mil pessoas para determinar se estavam vivas ou mortas. Com isso, o estudo de Spagat e sua equipe extrapolou os resultados para chegar a um número total, de forma semelhante à que uma pesquisa eleitoral extrapola respostas de uma amostra de entrevistados para projetar a tendência coletiva.
Ao perguntar também se as mortes de familiares foram violentas ou não violentas, o estudo estima ainda que há cerca de 8.000 óbitos não violentos além do que seria esperado em condições normais em Gaza —o que pode representar pessoas que morreram por falta de remédios, cuidado médico adequado ou de fome.
A estimativa de mortes violentas, muito provavelmente causadas pelos bombardeios de Israel contra o território, também se encaixa com uma pesquisa publicada em janeiro na revista científica The Lancet. Este estudo, conduzido pela universidade London School of Hygiene and Tropical Medicine (LSHTM), analisou dados oficiais do Ministério da Saúde e os referenciou com uma lista de mortos e publicações de redes sociais para chegar a estimativas parecidas com as de Spagat e sua equipe.
Em entrevista à Folha, Spagat diz que seu trabalho mostra que os dados do Ministério da Saúde de Gaza são "confiáveis, mas subnotificados". "Encontramos um número de mortos maior do que o documentado [pela pasta]. Mas as características demográficas que encontramos são bastante consistentes com aquelas do ministério, o que aponta sua confiabilidade."
Para ele, é de se esperar que os dados oficiais não sejam capazes de refletir todas as mortes. "As coisas estão acontecendo muito rápido, e todos os hospitais do Ministério da Saúde foram atacados —alguns deles, completamente destruídos."
Spagat não estima um número total de civis mortos na pesquisa, porque isso implicaria perguntar às famílias se os homens mortos eram membros de alguma facção terrorista. "Isso poderia soar ameaçador", diz. Ainda assim, com base em sua experiência analisando outras guerras, como a de Kosovo, o pesquisador diz que a maioria dos homens mortos provavelmente também era de civis.
O trabalho de Spagat e da LSHTM, entretanto, sofre críticas dos australianos Lewi Stone e Gregory Rose, bem como de outros pesquisadores que trabalham para mostrar que as acusações de genocídio em Gaza são infundadas e que as Forças Armadas de Israel tentam proteger civis.
O estudo de Stone e Rose, publicado em abril pelo think tank conservador Henry Jackson Society (HJS), do Reino Unido, mostra contradições entre dados publicados pelo Ministério da Saúde e aqueles divulgados pelo Escritório de Mídia do governo do Hamas, que falou em 70% dos mortos sendo mulheres e crianças —um número que não é sustentado por nenhum dos estudos, apesar de ser citado por um relatório da ONU de novembro de 2024 com base em um levantamento limitado de 8.000 mortes.
A publicação dos pesquisadores australianos aponta ainda que o Ministério da Saúde não diferencia entre mortos civis ou combatentes, não é claro sobre a inclusão de óbitos não violentos, e não inclui mortes de comandantes do Hamas confirmadas por Israel. "Não confiamos nem um pouco nesses dados", disseram os acadêmicos à reportagem.
Stone e Rose chegam a uma porcentagem similar de mulheres e crianças mortas em comparação com Spagat: 51% do total. Entretanto, afirmam que esse número provavelmente inclui menores de idade que são membros do Hamas.
Em resposta por email a perguntas da reportagem, Stone citou taxas maiores de civis mortos em outros conflitos (que incluem civis no geral, não apenas mulheres e crianças) para justificar a afirmação de que Israel atua para limitar danos a não combatentes.
Afirmou ainda ter realizado entrevistas com soldados israelenses "que reagiram com incredulidade a estatísticas" do Ministério da Saúde de Gaza. "Os soldados têm ordens específicas de não machucar mulheres e crianças. Ouvi isso em entrevista após entrevista", afirmou.
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Questionado também sobre o estudo de Spagat, Stone disse que ele "foi rejeitado pelo periódico científico onde seria publicado, o que não dá muita confiança de que suas conclusões estão corretas. Além disso, há muitos problemas com o método de pesquisa de porta em porta".
Spagat se defende e afirma que é natural que estudos sejam rejeitados em publicações e que, nesse caso, isso ocorreu "devido a protestos enérgicos de apenas um dos cinco avaliadores", sem entrar em detalhes. Disse ainda que o estudo "certamente será publicado" em outro periódico.
Stone e Rose citam outro fato na argumentação de que Israel protege civis: em Gaza, 75% da população é composta de mulheres e pessoas abaixo de 18 anos. "Se a taxa de morte dessas pessoas chegasse a 75%, poderíamos dizer que Israel as ataca indiscriminadamente. Mas não é o caso."
Em resposta a esse questionamento, Spagat diz que não é incomum que homens sejam desproporcionalmente mortos em conflitos, e que isso não significa que todos eles são combatentes.
"Os homens estão mais expostos. São homens que saem às ruas em busca de comida, que visitam os pontos de distribuição de ajuda [onde soldados israelenses têm baleado palestinos]. E são homens que, muitas vezes, são confundidos por militares como sendo combatentes."