Modelo 'chave e fechadura' é simplista demais para biomoléculas

13 horas atrás 1

Conforme prometido, volto ao blog para abordar mais um tema fascinante do livro "How Life Works", do jornalista de ciência britânico Philip Ball (confira minha outra postagem sobre a obra aqui). A obra lança pelos ares boa parte do simplismo com que os mecanismos básicos do funcionamento dos seres vivos andou sendo tratado pelo público e mesmo pelos cientistas nos últimos tempos. O tema de hoje envolve algo que afeta profundamente as premissas mais importantes do elo entre biologia molecular, biotecnologia e biomedicina nas últimas décadas.

Para entender melhor isso, comecemos com uma breve revisão das aulas de biologia do ensino médio. Existem bilhões (não, sério, literalmente bilhões) de exceções, mas um dos mecanismos mais comuns do funcionamento celular é o uso da informação genética armazenada no DNA para a fabricação de proteínas, tendo o RNA, molécula "prima" do DNA, como intermediário.

De modo geral, cada trio de "letras" de DNA corresponde a um tipo de aminoácido (são cerca de 20 tipos, no total), moléculas que, por sua vez, são as unidades ou "tijolos" a partir das quais as proteínas são feitas. Proteínas que, por sua vez, desempenham uma grande parcela do funcionamento celular.

Como cada tipo de aminoácido possui características químicas ligeiramente diferentes dos demais (como, por exemplo, a capacidade de interagir com moléculas de água ou de repeli-las), a montagem da estrutura proteica tende a levar, por meio dessas interações, à formação de uma complicada estrutura tridimensional, única para cada tipo de proteína.

Costuma-se dizer que essa estrutura 3D é um exemplo clássico da máxima "a forma é a função". Ou seja, o formato de uma proteína, como a de uma chave, é essencial para sua interação específica com outras biomoléculas, permitindo, por exemplo, que anticorpos reconheçam invasores do organismo, ou que uma célula reconheça determinado medicamento que se encaixou à perfeição na superfície de sua membrana.

O problema é que, como Ball explica em seu livro, esse modelo é simplista. Simplista até demais.

Os últimos dados indicam que entre 30% e 50% das proteínas das células de seres vivos como nós NÃO contam com a famigerada estrutura tridimensional completamente definida, que pode ser elucidada por meio da fabricação de cristais de cada proteína.

Ao que parece, são proteínas "molengas", de conformação pouco definida, que não têm interação ultraespecífica com "fechaduras" (receptores, para usar o termo preferido pelos biólogos moleculares). Em vez disso, podem interagir com uma gama mais ampla de outras biomoléculas, dependendo de uma infinidade de fatores contextuais.

Entre um terço e metade das moléculas do organismo humano é, como vocês devem imaginar, o que o populacho chama de "coisa pra caramba". E isso deixa muito claro que o modelo que predomina na biomedicina, o de achar uma molécula com ação farmacológica específica que interage com um receptor específico, terá utilidade limitada para muitos problemas de saúde importantes. Outros modelos são necessários, mas bem difíceis de formular.

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