Esta semana uma série de eventos em Paris celebra o primeiro aniversário dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris. Um ano atrás, Tony Estanguet, 47, presidente do comitê organizador, viveu um momento consagrador na cerimônia de encerramento: 80 mil pessoas gritaram seu nome no Stade de France lotado. Era um reconhecimento pelo sucesso de organização das duas competições.
Em entrevista à Folha, o dirigente, ex-tricampeão olímpico de canoagem, faz um balanço do legado dos Jogos, relembra os momentos mais difíceis e defende o papel dos megaeventos esportivos como exemplo de tolerância: "Para resistir contra aqueles que estão se isolando, com visões talvez um pouco assustadoras".
Qual é o legado mais importante dos Jogos, tanto para a França quanto para o esporte em geral?
É sempre difícil responder a essa pergunta, porque existem várias formas de legado. Se realmente tivesse que escolher o mais impactante, seria certamente o legado imaterial. O que mais me marcou, foi ver o quanto os Jogos permitiram viver emoções muito fortes e inesquecíveis. O poder do esporte de congregar as pessoas, de emocioná-las, para mim, é um legado fundamental. É muito diferente de legados como a Vila Olímpica, o centro aquático ou outras formas de legado material. O imaterial talvez seja o mais importante. Porque, no final, acredito que tocamos milhões, talvez bilhões de pessoas. E as pessoas saem dos Jogos com essa lembrança positiva de ter vivido grandes momentos em família. Ter visto o esporte inspirar milhões de crianças a praticar esportes. Para mim, essas emoções são o mais importante.
Há alguns dias, o mundo inteiro falou sobre a liberação do mergulho no Sena, que também é um legado dos Jogos. O senhor já mergulhou no rio desde a reabertura? Qual é o significado simbólico?
Não estive em Paris nas últimas semanas para poder nadar. Mas de fato é um legado muito importante. Eu venho de um esporte, a canoagem, praticado em rios e córregos. Portanto, vê-los despoluídos, ver que um ecossistema natural pode renascer, acho muito importante. Além disso, também permite que a população possa nadar. Também acho importante que a poluição humana seja reduzida, por razões ambientais. E foi isso que se conseguiu com todos estes investimentos.
Da participação brasileira, que lembrança mais o marcou?
Com certeza, sem refletir, penso imediatamente em Gabrielzinho, que marcou a mente de bilhões de pessoas. É realmente uma estrela que brilhou e nos conquistou. Acho que ele soube encarnar tudo o que amamos: êxito, excelência, alegria de viver, resiliência, superação, solidariedade. Foi incrível ver esse atleta ter tanto sucesso nos Jogos. E o sucesso de Paris-2024 deve muito a ele também pelo sucesso de Paris 2024, porque, no fim das contas, são poucos os atletas que se destacam e vão ficar na memória de todos. Gabrielzinho conseguiu esse feito de marcar a memória de toda a população.
E pessoalmente, qual foi o melhor momento dos Jogos? E o mais difícil?
O momento mais difícil, eu diria que foi o dia 26 de julho, um dia muito intenso, muito difícil. Eu tinha uma série de obrigações com o protocolo, tínhamos a recepção de todos os chefes de Estado, de todas as autoridades com o presidente [Emmanuel Macron] no [Palácio do] Eliseu. Eu também tinha muitos compromissos com a mídia, de manhã no rádio, ao meio-dia na TV. Estávamos fazendo os últimos ajustes, tivemos incidentes durante todo o dia com os trens [uma sabotagem interrompeu parte do tráfego ferroviário], problemas de clima, tivemos que adaptar muitas coisas. Então, foi um dia realmente muito difícil, muito cansativo. Como já estávamos um pouco cansados nas semanas anteriores, foi uma maratona muito, muito difícil. Eu estava completamente exausto no final da cerimônia. Por outro lado, acho que também foi um grande alívio ver que os Jogos conseguiram começar em condições difíceis, mas de uma maneira bonita, ter conseguido realizar a cerimônia de abertura em condições tão difíceis. No fim, talvez tenha sido também a emoção mais bonita para mim, porque senti uma energia muito forte ao pensar : "Se sobrevivemos a isso e conseguimos organizar esta cerimônia agora, a festa vai ser bonita, porque somos imparáveis e acredito que estamos prontos para grandes Jogos." Portanto, foi ao mesmo tempo o dia mais difícil e, no final, ao término da cerimônia de abertura com Céline Dion, para mim, em poucos minutos, foi um pouco de alívio, de libertação e, de repente, a energia voltou porque senti orgulho de ter conseguido organizar a cerimônia.
Houve um relatório recente do Tribunal de Contas francês sobre o custo dos Jogos. O que o senhor responde quando lhe perguntam sobre essa questão?
Essa é uma pergunta recorrente, habitual no balanço dos Jogos em todas as edições. É evidente que sempre há um pouco de debate e polêmica. Eu respondo que não se deve misturar investimentos permanentes com investimentos temporários para a organização dos Jogos. Infelizmente, muitas vezes, querem somar tudo para tentar inflar a conta o máximo possível. Mas não se pode contar duas vezes os mesmos custos. O custo de construção de um equipamento esportivo que permanecerá por décadas, para mim, não deve ser incluído no custo da organização de um evento. O custo da organização de um evento é o preço do aluguel desse equipamento. Nós alugamos todos os equipamentos com o orçamento do comitê organizador. Foram necessários dezenas de milhões de euros para alugar o Stade de France, o centro aquático e a vila olímpica. Confunde um pouco e gera mal-entendidos quando somam os custos de construção, transporte, ou mesmo de escolas em Seine-Saint-Denis que foram feitas durante o período dos Jogos, mas que, para mim, não são necessidades dos Jogos. Não entendo por que querem somar todos esses custos.
Cada edição dos Jogos tem seus problemas. Para Los Angeles-2028, por exemplo, há a questão dos incêndios florestais, o problema dos vistos para os países que não têm boas relações com os Estados Unidos. Que lição Paris-2024 pode dar? O senhor está em contato com os comitês organizadores de Los Angeles e dos Jogos de Inverno de 2030, que serão nos Alpes franceses?
Sim, estou em contato com eles na verdade desde o final de 2024. Já fui duas vezes a Los Angeles e sou membro da comissão de coordenação. Troco ideias com o comitê organizador e o COI. Para 2030, faz menos tempo. Há cerca de um mês e meio que troco ideias com Edgar Grospiron [presidente do comitê organizador] sobre as lições aprendidas em Pari e como podemos ajudá-los a avançar. Foi um pouco complicado durante o inverno e no início da primavera. Estamos tentando ver como as equipes de Paris 2024 podem ajudar um pouco mais em 2030. Não existe uma receita de verdade. Evito dar conselhos às futuras organizações dos Jogos. O certo é que, para Paris, também não foi fácil e, no entanto, no final, foi um grande sucesso. É sempre difícil organizar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em qualquer país. Mas vale a pena perseverar, ser resiliente e ambicioso. Paris-2024, num contexto nacional e internacional que não era fácil, foi um projeto recebido de forma muito positiva em todo o mundo. Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos têm hoje um papel a desempenhar na nossa sociedade, no mundo, para garantir a tolerância e o respeito pelos valores coletivos, para resistir contra aqueles que estão se isolando, com visões talvez um pouco assustadoras. Todos compartilhamos o mesmo planeta. De vez em quando, precisamos reunir a humanidade em torno de coisas positivas. Há poucas oportunidades e os Jogos são uma delas.
Um ano atrás, o senhor disse que iria refletir sobre o seu futuro. Já decidiu?
Era importante para mim tirar um tempo antes de pensar no que fazer. A última reunião do conselho de administração foi em junho, então faz só algumas semanas. Pensei muito e decidi permanecer no mundo do esporte. Quero continuar trabalhando nessa área, seja na França ou no exterior. O esporte e os Jogos mudaram minha vida, como atleta e como organizador de Paris-2024. Acho que ainda acho há coisas a fazer para reforçar o lugar do esporte na sociedade. Tenho a sorte de ter construído uma rede muito importante. Ainda não é nada muito concreto, mas a partir de setembro vou trabalhar no esporte, seja em eventos ou em consultoria. Queria muito aproveitar as férias com meus filhos neste verão, pois faz dez anos que não tiro férias longas com eles.