Marco fundador da ideologia de Adolf Hitler (1889-1945), o livro "Mein Kampf" (Minha Luta) foi publicado pela primeira vez há 100 anos, em 18 de julho de 1925. Era apenas o primeiro volume da posterior versão consolidada —o segundo ficaria pronto no ano seguinte.
Um século depois, a controversa obra repleta de discursos de ódio traz respostas sobre um questionamento cada vez mais comum, fomentado principalmente por políticos e influenciadores de direita: seria o nazismo um movimento de direita ou de esquerda?
"No clima político atual, em que movimentos de extrema-direita tentam distorcer suas raízes intelectuais culpando a esquerda, torna-se ainda mais essencial ler 'Mein Kampf' de forma crítica. Não porque o livro ofereça algum insight político, mas porque revela, por meio de sua linguagem febril e odiosa, o verdadeiro núcleo do fascismo. E nos lembra aonde tais distorções podem nos levar", diz à BBC News Brasil o cientista político Eirikur Bergmann, professor na Universidade Bifröst, na Islândia.
Bergmann dirige o Centro de Estudos Europeus e é autor de, entre outros livros, "Neo-Nationalism: The Rise of Nativist Populism" (Neo-Nacionalismo: O Crescimento do Populismo Nativista, em tradução livre).
A confusão semântica se apoia no nome completo do partido fundado por Hitler e conhecido simplesmente como partido nazista: o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla em alemão).
Mas as páginas do próprio "Mein Kampf" são claras sobre como Hitler vislumbrava, com sua ideologia, um projeto radicalmente antissocialista, anticomunista e antimarxista.
Na análise de pesquisadores contemporâneos, uma das propostas-chave que aparecem em "Mein Kampf" é um nacional-socialismo erguido a partir da luta racial —em vez da bandeira da luta de classes empunhada pelos militantes de esquerda para conquistar a massa dos trabalhadores alemães.
"A afirmação de que o nazismo era de esquerda é uma bobagem", afirma à BBC News Brasil o cientista político Simon Munzert, professor na Escola Hertie, universidade em Berlim, na Alemanha. "Hitler expressa forte rejeição tanto ao socialismo quanto ao comunismo ao longo do livro, e o Partido Comunista era o principal adversário do partido nazista durante a República de Weimar [nome oficial do Reich Alemão]."
O nome do partido nazista é frequentemente usado, fora de contexto, como prova de que o nazismo teria alguma relação com a esquerda. O problema, segundo os especialistas, é que essa leitura ignora a estrutura, o conteúdo do programa político do partido e, sobretudo, as intenções claras expressas por seu maior líder.
Socialista na propaganda
A denominação socialista funcionava muito mais como propaganda, como tentativa de atrair setores populares, especialmente aqueles trabalhadores que já estavam desiludidos com as plataformas da esquerda, diz Bergmann. Os nazistas esvaziaram o conceito: entre suas propostas não havia a ideia de redistribuição de riqueza ou de justiça social.
Bergmann diz que o nome "nacional-socialista", no caso dos nazistas, era "uma designação enganosa". "O uso do termo 'socialista' no nome do partido foi pura propaganda, uma tentativa de atrair o apoio da classe trabalhadora, afastando-a da esquerda", ressalta. "Em essência, o nazismo foi um movimento reacionário: antiliberal, anti-igualitário, antidemocrático e ferozmente contrário aos princípios centrais da ideologia de esquerda."
Pesquisador na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, onde dirige interinamente o Instituto Internacional, o professor Johannes von Moltke ressalta à BBC News Brasil que essa deturpação é "uma completa perversão do termo".
"Ao atrair trabalhadores com promessas falsas, ela [a narrativa] se assemelha ao apelo populista contemporâneo ao 'povo' por parte de uma elite oligárquica que não se importa minimamente com a situação real dos cidadãos comuns. O objetivo nunca é empoderar essas pessoas, mas sim controlá-las e, no caso do fascismo, aterrorizá-las."
"O termo nacional-socialista fazia parte de uma estratégia de propaganda mais ampla", comenta Munzert. "Mas, ideologicamente, o nazismo era veemente antimarxista e antissocialista. O regime também perseguiu violentamente socialistas e comunistas após assumir o poder."
Para o cientista político alemão, "a equiparação do nazismo ao socialismo é uma distorção deliberada, muitas vezes usada atualmente para deslegitimar posições políticas de esquerda, associando-as aos horrores do regime nazista."
Autor da trilogia "O Terceiro Reich" e professor aposentado na Universidade Cambridge, na Inglaterra, o historiador Richard J. Evans situa o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães em uma "longa tradição de partidos de direita antissemitas" alemães que objetivavam "conquistar a classe trabalhadora" afastando-a da social-democracia e atraindo-a para "uma política direitista, racista e ultranacionalista".
"A visão de socialismo de Hitler, que ele expôs muitas vezes, consistia simplesmente na crença de que a comunidade vinha antes do indivíduo", explica o historiador à BBC News Brasil. "Isso nada tinha a ver com o socialismo verdadeiro. Hitler, por exemplo, manteve a economia capitalista, enquanto os socialistas queriam nacionalizá-la."
Evans lembra que em "Minha Luta", o líder nazista retrata o socialismo e o comunismo como "ideologias coletivistas e subversivas".
Especialista em Holocausto, o cineasta, escritor e palestrante Marcio Pitliuk, autor de, entre outros livros, "O Homem Que Venceu Hitler", lembra que tanto o regime de Hitler quanto o socialismo de Josef Stalin (1878-1954) na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) perseguiram minorias.
Mas ele explica que, mais do que o termo nacional-socialismo, o que realmente deu essa ideia de que o nazismo seria de esquerda foi o fato de que era um partido, segundo o nome, de "trabalhadores alemães". "Começou como um partido de esquerda e depois passou a atacar os comunistas como estratégia de crescimento", argumenta Pitliuk.
Marxismo: o inimigo
"'Mein Kampf' é uma porta de entrada para a mente de Hitler e seu sistema de crenças, sendo, portanto, essencial para compreender tanto ele quanto a era nazista da história alemã e os horrores da Segunda Guerra Mundial que ele desencadeou", define à BBC News Brasil o historiador Christopher Browning, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e autor de, entre outros, "The Path to Genocide: Essays on Launching the Final Solution" (O caminho para o Genocídio: Ensaios sobre o Lançamento da Solução Final, em tradução livre).
"Uma vez despido de sua aura histórica, 'Mein Kampf' é, em muitos aspectos, um livro profundamente ridículo", diz Bergmann. "É um discurso repetitivo e errático, cheio de contradições, paranoia conspiratória e grandiosidade adolescente. Sua argumentação é desajeitada, sua lógica é infantil e sua prosa, muitas vezes, dolorosamente entediante."
Lá Fora
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O professor islandês afirma que o livro "revela a lamentável superficialidade do pensamento de Hitler". "E isso também é instrutivo. Lembra-nos de que ideologias catastróficas não exigem brilhantismo filosófico, apenas as condições certas, um demagogo e um número suficiente de pessoas dispostas a olhar para o outro lado", reflete.
Ele acredita que, no centenário do texto, o documento precisa ser tratado "não como uma relíquia a ser temida ou uma escritura a ser sussurrada", mas como "um estudo de caso em patologia política".
"Em uma era em que o nacionalismo autoritário e a culpabilização populista voltam a se infiltrar no discurso dominante, 'Mein Kampf' serve, de fato, como um espelho sombrio, mas útil. Não porque a história se repita exatamente, mas porque ela rima. E seria prudente ouvirmos atentamente esses ecos", alerta o cientista político.
A estrutura ideológica do nazismo se apoia em três pilares: nacionalismo extremo, racismo biológico —sobretudo o antissemitismo— e anticomunismo. Esses fundamentos foram claramente delineados por Hitler em seu livro.
Professor na Universidade Stetson, nos Estados Unidos, e autor do livro "Os Monstros de Hitler: Uma História Sobrenatural do Terceiro Reich", o historiador Eric Kurlander explica à BBC News Brasil que o fascismo em geral, "e o nacional-socialismo em particular", bebeu em elementos das três grandes correntes políticas do século 19: o liberalismo, o conservadorismo e o socialismo.
E, com isso, criou "um movimento popular que buscava transcender as divisões socioeconômicas ou de classe tradicionais e formar um verdadeiro Volksbewegung (movimento popular nacional)".
"Por essa razão, o fascismo apresentava um programa disparatado e contraditório em relação à economia política: aliava-se ao complexo militar-industrial, incluindo a indústria pesada, elites financeiras, militares e aristocracia fundiária, desmontava sindicatos e proibia partidos socialistas e comunistas para promover uma forma de capitalismo estatal e organizado", detalha.
"Ao mesmo tempo, prometia, e às vezes cumpria, programas generosos de assistência social e ajuda estatal a trabalhadores, camponeses e famílias dispostas a gerar mais filhos."
Kurlander diz que "Minha Luta", assim, é emblemático acerca das contradições desse processo, ao "vilificar o socialismo marxista e o comunismo, exaltando ao mesmo tempo as virtudes do camponês alemão e dos empreendedores do Mittelstand [pequenas e médias empresas]", "atacar o capitalismo financeiro judaico internacional" e "prometer expropriar e redistribuir as terras e recursos da aristocracia feudal".
"No entanto, se seguimos o rastro do dinheiro, ao início da Segunda Guerra Mundial já estava bastante claro que o Terceiro Reich era, econômica, social e politicamente, muito mais conciliador com as elites capitalistas do que com trabalhadores ou camponeses", destaca.
Hitler escreveu que "converter o comunista é a tarefa do movimento nacional-socialista", disse ter "repulsa" crescente pelo marxismo e chamou os seus militantes de "inimigos de todas as religiões". Para o líder nazista, a "doutrina marxista" era o "aborto de um cérebro".
"Mais do que qualquer outro grupo, os marxistas, ludibriadores da nação, deveriam odiar um movimento cujo escopo declarado era conquistar as massas que até então tinham estado a serviço dos partidos marxistas dos judeus internacionais", argumentou Hitler. "Só o título Partido dos Trabalhadores Alemães já era capaz de irritá-los."
Para o líder nazista, os adeptos do socialismo marxista eram "uma multidão de vagabundos, pulhas partidários e literatos judeus" e os interessados "pela universal peste marxística e seus defensores" precisavam ser "banidos com as fórmulas de exorcismo do parlamentarismo ocidental".
Cercanías
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Evans diz que o livro de Hitler "é um texto prolixo e incoerente, que poucos leram integralmente". "Sua influência se espalhou por meio de citações e trechos", frisa.
Moltke afirma que "uma rápida leitura" do livro de Hitler mostra não apenas o seu "total desprezo por qualquer posição associada à esquerda política" como ataques "a todo momento", associando-os "aos judeus e ao internacionalismo". "É aí que surgem teorias da conspiração", ressalta.
"Na visão etnonacionalista do nazismo, socialistas, comunistas e judeus se fundem em um único inimigo a ser desumanizado e perseguido. Embora os nazistas tenham se apropriado de símbolos da esquerda, como a cor vermelha em sua bandeira ou a celebração do 1º de maio como o Dia do Trabalhador, é absolutamente absurdo sugerir que o Nacional-Socialismo tenha tido alguma dimensão de esquerda, a menos que se pretenda traçar paralelos com outras formas de totalitarismo, como o stalinismo", prossegue o especialista.
"Comunistas e socialistas foram os primeiros a serem presos e internados em campos de concentração quando os nazistas chegaram ao poder, em 1933."
Para Bergmann, a ideia de que o nazismo teria sido "de esquerda" é uma "distorção politicamente motivada e uma inversão da história que não resiste nem mesmo ao escrutínio mais superficial".
"Em 'Mein Kampf', o desprezo de Hitler pelo socialismo, especialmente pelo marxismo, é veemente e inequívoco. Sua obsessão em esmagar o comunismo e destruir a solidariedade baseada na classe percorre o texto como uma veia envenenada. Ele via o marxismo como uma conspiração judaica destinada a enfraquecer a unidade nacional e o culpava pela humilhação da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial", argumenta o professor.
"Para entender onde o nazismo se posiciona no espectro ideológico, é preciso ir além dos rótulos e examinar o conteúdo de sua visão de mundo", continua ele.
"Ideologicamente, o nazismo está profundamente enraizado na extrema direita, especialmente no eixo cultural. Promove hierarquia racial, ultranacionalismo, militarismo, tradicionalismo patriarcal e uma reverência quase mística ao 'sangue' e ao 'solo'. Essas ideias certamente não são de esquerda em nenhum sentido. Elas formam a base da ideologia autoritária de direita."
Pesquisadores como o historiador americano Timothy Snyder, professor na Universidade Yale, nos Estados Unidos, e autor de, entre outros livros, "Terras de Sangue: a Europa entre Hitler e Stalin", classificam o líder nazista de um anti-iluminista que via a política como uma luta racial, e não uma luta de classes.
Desta forma, ao contrário da esquerda tradicional, Hitler pregava uma hierarquia racial, com liderança autoritária e culto ao Estado. Neste aspecto, justiça social não estava no escopo, já que a única igualdade aceita por essa lógica era a de raça —no caso, a raça ariana.
"Hitler e o nazismo eram inimigos implacáveis tanto do liberalismo moderado, baseado na igualdade perante a lei, no governo representativo e constitucional e na legitimidade derivada das eleições, quanto de todas as formas de socialismo marxista, baseado na solidariedade internacional da classe trabalhadora e nos direitos trabalhistas, divididas entre os social-democratas moderados e os comunistas revolucionários antidemocráticos", explica Browning.
O professor ressalta que a proposta nazista de "socialismo-nacional" era baseada "na solidariedade racial em vez da solidariedade de classe". E isto era uma tática para "afastar a classe trabalhadora do socialismo internacional, ou seja, o de esquerda".
"Essa tentativa de atrair os trabalhadores continha alguns elementos populistas, mas sempre esteve subordinada à primazia da raça no pensamento de Hitler", diz.
"Nazismo de esquerda"
Desde a segunda metade dos anos 2010, a narrativa de que o nazismo seria de esquerda entrou com força no debate público brasileiro. Isso ganhou especial repercussão em 2019, quando o então chanceler Ernesto Araújo fez declarações oficiais defendendo essa visão —tese posteriormente repudiada por acadêmicos e pelo governo alemão.
A imprensa alemã chegou a classificar o episódio como o dia em que "o absurdo virou discurso oficial". Na época, a antropóloga Adriana Dias (1970-2023), doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisava o crescimento do neonazismo no Brasil e identificou, em comunidades online, que esse tipo de argumentação era cada vez mais recorrente.
Essa narrativa, contudo, não é difundida apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, o jornalista e colunista político conservador Jonah Goldberg referenda ideias semelhantes.
Em seu livro "Liberal Fascism: The Secret History of the American Left, from Mussolini to the Politics of Meaning" (Fascismo Liberal: A História Secreta da Esquerda Americana, de Mussolini à Política do Significado, em tradução livre), ele argumenta que os movimentos fascistas foram e são produtos da esquerda política. Acadêmicos, contudo, veem em leituras assim um revisionismo mal-intencionado.
Em entrevista veiculada pelo empresário Elon Musk em sua plataforma X, recentemente, a política Alice Weidel, líder do partido de direita radical alemão Alternativa para Alemanha (AfD) também afirmou que o nacional-socialismo era de esquerda e comunista. O professor Johannes von Moltke avalia que com isso, Weidel reivindica, "para seu próprio populismo de direita o manto do 'anticomunismo'."
"Esse tipo de absurdo semântico é característico da nova direita contemporânea, que tornou a redefinição de conceitos políticos e culturais parte de sua plataforma metapolítica", argumenta ele.
Em 2017, o historiador e jornalista Felipe Schadt viralizou nas redes sociais com um post no qual elencava algumas frases de "Minha Luta" em que Hitler critica a esquerda. Em conversa com a BBC News Brasil, a "confusão" buscada por extremistas de direita ao associar o nazismo ao outro espectro, não passa de "uma tentativa deles de se desvincular da imagem de Hitler que, no consenso geral, é negativa para todo mundo".
"Isso também acontece aqui na Alemanha [ele, que é professor no Centro Universitário de Campo Limpo Paulista e no Centro Universitário Padre Anchieta, estava em Munique quando atendeu à reportagem], onde os membros da AfD tentam se desvincular do que foi Hitler, dizendo que ele havia sido de esquerda", conta. "Mas é só uma narrativa."
Schadt ressalta que, em "Minha Luta", Hitler fala "com asco" e "com nojo" da esquerda. Corrigir tal distorção não é apenas uma questão de precisão acadêmica —é uma tarefa urgente diante da crescente radicalização política e da disseminação de desinformação nas redes.
Para o cientista político Lucas Rezende, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), definir o nazismo como algo de esquerda é "um delírio coletivo".
"Tanto o nazismo quanto o stalinismo são movimentos totalitários. Mas isso não quer dizer que o nazismo seja de esquerda. Uma das pautas comuns de movimentos fascistas era justamente o anticomunismo, porque eles propunham uma reorientação do Estado para os interesses daquele setor da sociedade que se considerava detentor da única legitimidade", justifica ele à BBC News Brasil.
Rezende acrescenta que "manipular narrativas" é um instrumento comum que "une governantes totalitários". Relembrar os 100 anos da edição de "Mein Kampf" é também uma oportunidade para reafirmar que o próprio Hitler —com todas as letras— deixou claro quem eram seus inimigos: os marxistas, os socialistas, os comunistas, os liberais e os judeus.
Leitura contemporânea
A antropóloga Adriana Dias observou que em determinados grupos online de discurso supremacista branco, a obra de Hitler vinha sendo citada como "leitura obrigatória".
Desde que caiu em domínio público, em janeiro de 2016, o livro passou a circular com mais facilidade, muitas vezes sem qualquer contextualização crítica. Há uma preocupação quanto a isso. Com o fim dos direitos autorais sobre o texto, sua reprodução e reedições foram facilitadas.
A circulação do livro, em si, não é proibida nem na Alemanha atualmente —mas, sobretudo lá, na Áustria, e em alguns outros países europeus, existe uma sutileza na legislação para que tal leitura e eventual divulgação não se configurem como apologia ao nazismo.
Assim, as reimpressões precisam tomar o cuidado de contextualizar o conteúdo, com apresentação crítica de especialistas, notas de rodapé e diversos esclarecimentos. Na opinião dos pesquisadores, essa é a melhor solução.
"A proibição de livros é uma faca de dois gumes e muitas vezes tem o efeito contrário, despertando ainda mais interesse. Além disso, a internet já soltou esse 'gênio da garrafa', e seria quase impossível colocá-lo de volta: há muitas versões do livro circulando eletronicamente em vários idiomas. Além disso, 'Mein Kampf' está entre as fontes mais importantes que temos para compreender a história do Nacional-Socialismo", enumera o professor Moltke.
Ele cita a edição alemã mais recente, preparada por historiadores do Instituto de Histórica Contemporânea de Munique, como um "caminho a seguir".
"Quando as leis de direitos autorais expiraram e já não havia mais meios legais para impedir a publicação de 'Mein Kampf', uma equipe de historiadores decidiu produzir uma edição crítica. Colocando o texto original no centro de um livro de grande formato, eles literalmente o cercaram com materiais críticos e contextuais incluindo informações históricas sobre as pessoas e eventos descritos, contexto histórico, esclarecimento de conceitos-chave, revelação das fontes de Hitler, correções de erros, relatos tendenciosos, desinformação e informações falsas", explica o professor. "Eles também situam o livro dentro da historiografia e apontam suas consequências históricas."
Browning concorda que o livro "não deve ser proibido", mas sim "publicado com a devida contextualização".
Com a morte de Hitler e o fim da Segunda Guerra, os direitos autorais do livro ficaram com o Estado Livre da Baviera, na Alemanha, até que a obra entrasse em domínio público. No período, o livro foi de certa forma suprimido —não houve uma proibição, mas o detentor dos direitos simplesmente deixou de autorizar reedições. "Um dos motivos era seu potencial efeito incendiário", diz Munzert.
"Então, 'Mein Kampf' deveria ser proibido hoje? Acredito que não. Isso atribuiria ao livro mais influência do que ele realmente tem. Na verdade, o ato de censurá-lo pode ter o efeito contrário", argumenta ele.
"Acredito, de fato, que a maioria das pessoas que o ler hoje ficará incomodada com o estilo da escrita e com o conteúdo confuso. Atualmente, existem formas de discurso muito mais perigosas e com poder de persuasão muito maior."
"Além disso, medidas de censura devem ser sempre cuidadosamente ponderadas em democracias liberais. Considero compreensível, do ponto de vista histórico, a decisão de impedir sua circulação após 1945", comenta o professor. "Mas hoje, tal proibição já não se justifica. Nossa sociedade precisa ser capaz de tolerar a disponibilidade de textos como esse. O medo de ideias, por mais extremas que sejam, deve continuar sendo uma marca dos regimes autoritários, não das democracias."
Bergmann também acha que vetar o livro "apenas lhe conferiria uma mística de 'proibido'". "'Mein Kampf' é um dos livros mais infames do século 20, um manifesto tóxico que ajudou a lançar as bases ideológicas de um dos regimes mais sombrios da história da humanidade. Mas ele deveria ser proibido? Acredito que devemos enfrentá-lo, não escondê-lo", argumenta, defendendo que a solução é "publicá-lo em edições fortemente anotadas, envoltas em comentários contextuais rigorosos que exponham suas ideias perigosas pelo que realmente são: não apenas moralmente repugnantes, mas intelectualmente vazias".