A questão do Viagra

1 mês atrás 10

Aos homens, a cultura; às mulheres, a natureza: esse é o estereótipo atrelado aos gêneros. Desde o Iluminismo, reforça-se a crença de que os homens são os representantes da razão e da civilidade, enquanto elas seriam criaturas do instinto, da emoção, da irracionalidade.

Homens nascidos nos anos 1970 estão agora chegando aos 50 e, imbuídos dessa lógica, são obrigados a se haver com a questão mais central da nossa existência: o envelhecimento como evidência da finitude.

Para quem foi educado a competir e performar com o próprio corpo, a resposta quase sempre é a negação. Ao tentar controlá-lo por meio de academia, suplementos ou esteroides, raramente se faz o luto necessário pela juventude que ficou para trás ou pelo corpo que já não responde como antes.

Já das mulheres cisgênero e dos homens trans espera-se, desde o chá revelação, que cumpram sua função reprodutiva. Isso autoriza uma vigilância permanente sobre seus organismos. O controle chega a ponto de o Estado decidir se podem ou não levar uma gestação adiante, atropelando o desejo, as condições físicas, econômicas e psíquicas de cada uma. Nessa lógica, o corpo feminino está sempre sob escrutínio, inclusive o da própria mulher. Isso faz com que a relação delas com ele seja mais íntima, crítica e constante: observam, cuidam, refletem sobre suas funções corporais desde muito cedo, com uma autoconsciência que muitas vezes beira a obsessão.


Quando chegam à perimenopausa, algo muda da noite para o dia. A transformação é tão brusca que angústia e depressão se tornam palavras comuns entre mulheres que se sentem traídas pelo próprio organismo, incapazes de continuar vivendo nos moldes anteriores. O homem, por sua vez, vive a experiência de forma mais gradual e aproveita para dar os truques conhecidos: a piada pronta, a queixa estereotipada, a negação contínua dos sinais do tempo.

As mulheres, mais atentas, buscam tratamentos que amenizem as perdas naturais da idade. Ainda assim, segundo estudo do Instituto McKinsey Health e do Fórum Econômico Mundial, os marcadores de saúde delas ao longo da vida são piores que os dos homens. Elas se cuidam mais, pois não costumam contar com o cuidado de outros e, no entanto, isso não tem sido suficiente.

Para muitos homens, o primeiro alerta não vem da coluna, do fígado ou do joelho: vem do sexo. Seja porque a ereção falha, seja pelo medo de que ela venha a falhar. Trocar de parceira, evitar o sexo ou apressar o ato são algumas das estratégias para não lidar com a questão.

Enquanto as mulheres falam de menopausa até na fila do supermercado, trocando receitas que vão de hormônios a fitoterápicos, passando por hábitos alimentares e esportivos, os homens seguem na moita, tentando ignorar os sinais. Como se sabe, pouco conversam entre si e só recentemente passaram a levar o tema para o divã.

O uso de hormônios e remédios para ereção pode ser, para alguns, o ponto de virada: o momento em que reconhecem que algo mudou, não apenas no sexo, mas no tempo. É a chance, que tem sido desperdiçada, de que, em vez de zombar dos fogachos das companheiras, passem a admitir seus próprios perrengues e, quem sabe, até a cuidar delas. É também a chance de enfrentar o fato de que a velhice não é algo que só acontece com o outro.

A vida sempre foi curta; a velhice é só a última chance de reconhecermos isso.

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