Na última rodada do debate eleitoral americano, Donald Trump afirmou que os moradores de Springfield estavam recorrendo a cardápios menos convencionais com gatos, cachorros e outros pets. Fosse um exagero retórico ou uma previsão gastronômica, o comentário chamou atenção. Menos pelo surrealismo e mais porque o autor da catástrofe alimentar pintada por Trump talvez seja... o próprio Trump.
Enquanto reconquistou a Casa Branca a bordo da velha locomotiva do medo inflacionário, Trump resolveu mirar sua artilharia protecionista em aliados comerciais. O Brasil foi recentemente alvo de um aumento na tarifa de 50%, o que desorganizará as cadeias produtivas, pressionará os custos e elevará ainda mais o preço da carne nos EUA. Não satisfeito em teorizar sobre caninos no prato, Trump está, na prática, tornando os bifes mais caros e os pets mais tentadores.
A lógica, contudo, não é puramente econômica, mas política. O protecionismo ressoa fortemente entre eleitores da classe trabalhadora, especialmente no cinturão industrial dos EUA. Criticar acordos multilaterais e culpar rivais estrangeiros por perdas industriais é um discurso que tem sido eficaz, ainda que desprovido de soluções. A realidade é que tarifas e barreiras comerciais não trarão de volta empregos deslocados pela automação e pela evolução da economia global.
Se a história servir de guia, esse novo confronto tarifário trará altos custos, sem benefícios claros para os americanos. O livre comércio não é uma panaceia, mas a experiência recente mostra que o protecionismo tampouco é.
Segundo o Budget Lab, a tarifa efetiva média dos EUA, após a incorporação de todas as tarifas de 2025 até 2 de abril, foi de 22,5%, ou seja, a mais alta desde 1909. Isso provocou um aumento médio de 2,3% no custo de vida e um prejuízo de até US$ 3.800 por família. O valor da carne tem subido consideravelmente e, dentre outros fatores, o aumento da tarifa já pode ter dado uma resposta nessa última semana.
Na parte Sul do Atlântico, o efeito tem sido inverso. No Brasil, o valor da carne caiu, junto com o da laranja e do café, gerando economia para o consumidor brasileiro. Lula, que estava com a aprovação em consistente queda, viu seu índice subir de 40 % para 43 % após o anúncio da tarifa.
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O governo atribuiu isso à percepção de que a medida é uma intromissão gringa. A narrativa encontrou eco num imaginário nacional sensível à soberania ferida por potências estrangeiras. Mesmo sem alterar uma vírgula na política econômica, o Planalto colheu dividendos ao vestir o figurino do país agredido que resiste. Em tempos de desconfiança institucional e crise de resultados, nada como um inimigo externo para unificar o apoio interno.
Essa história é um retrato perfeito da política performática. Trump grita "desastre inflacionário" enquanto ele mesmo perde votos com medidas que encarecem o alimento, e Lula surfou nessa onda sem precisar prometer nada, exceto carne mais barata, que já começa a chegar ao prato. Enquanto isso, o protecionismo que supostamente visava proteger o trabalhador americano está empobrecendo-o e tem deixado os pets dos EUA mais apreensivos.
O texto é uma homenagem à música "Eating the cats", de The Kiffness.