Ao depor no Supremo Tribunal Federal como réu, na terça (10), e autorizado pela legislação brasileira a mentir em juízo, o ex-presidente Jair Bolsonaro invocou diversas vezes diante do ministro Alexandre de Moraes o álibi de sua "retórica".
Por não ser usual em sua boca, a palavra merece atenção. "Retórica", para o ex-presidente, é aquilo que o levaria a pronunciar as barbaridades mais violentamente ilegais e mentirosas quando, na verdade, suas intenções sempre foram de uma pureza de Francisco de Assis entre os passarinhos.
"Qual é o indício que o senhor tinha", perguntou Moraes, após ler declarações do réu com acusações de corrupção contra três ministros do STF, "de que nós estaríamos levando 50 milhões, 30 milhões de dólares?"
"Não tenho indício nenhum, senhor ministro", respondeu o ex-presidente, para em seguida pedir desculpas. Foi um dos momentos em que assumiu diante de sua nêmesis –a primeira autoridade federal que seria assassinada se o golpe tivesse ido adiante, segundo apurou a Polícia Federal– uma postura humilde e conciliadora, resvalando na lisonja.
Sobre seu discurso mentiroso, completou Bolsonaro: "Um desabafo, uma retórica que eu usei". Essa foi uma das muitas vezes em que a palavra nascida no grego "rhetoriké" apareceu em seu depoimento.
A repetição sugere uma estratégia da defesa: usar o conhecido destempero verbal do ex-presidente para esvaziar de sentido suas muitas falas incriminatórias reunidas na denúncia.
O problema se deslocaria assim da esfera criminal para a da psicopatologia, na qual se espera que uma "retórica" desconectada da realidade figure como mero mau hábito. O ex-presidente chegou a dizer que tem feito progressos no combate à sua "retórica".
Aristóteles estranharia ver empregado em tal contexto o nome do saber sobre o qual escreveu o primeiro tratado abrangente. Uma das bases da filosofia, a retórica foi parte estruturante do ensino de humanidades até o século 19.
Definida na origem como "arte ou técnica do bem falar", restrita a princípio à oratória, ela sempre esteve ligada à persuasão de audiências –por caminhos éticos, emocionais, racionais ou, de preferência, uma mistura dos três.
No sentido da persuasão é possível reconhecer Bolsonaro como um retórico, ainda que os caminhos éticos e racionais sejam pouco palmilhados por ele: convencer quase metade dos eleitores a renovar seu voto de confiança após um primeiro mandato como aquele é um feito e tanto de comunicação.
O problema de sua "retórica" é a contradição que a dilacera. Ela só contempla a dimensão aristotélica do "ethos" ("Me desculpem, não tinha essa intenção") quando falha feio no "pathos", a tentativa de arrastar as fichas de um país inteiro por meio da passionalidade, com as armas da mentira e da violência.
Concluímos assim que a palavra "retórica" assinala no discurso do ex-presidente, de forma erudita, aquilo que seu sorriso servil diante de Moraes assinalou como linguagem corporal para os "malucos" [sic] que acreditaram nele: sua imensa covardia.
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