Verdade seja dita, a Folha publicou, em seu "Manual da Redação", algumas dessas "bobagens", como o "Cristo enforcado" e a "gripe transmitida por filhotes de perdizes (perdigotos)", que fazem parte do folclore da coluna "Erramos". Lapsos desse tipo, penso eu, jamais deveriam ser motivo para "bullying" linguístico, pois geralmente são fruto de cansaço, de uma jornada extenuante, enfim, não se trata de alguém, em sã consciência, achar mesmo que Cristo tenha sido enforcado, mas, talvez, de um cruzamento com a imagem de Tiradentes, enfim, coisas que podem acontecer em estado de fadiga e que poderiam ser evitadas com uma "equipe de revisores".
Isso não quer dizer, por óbvio, que o revisor esteja imune ao erro, mas, por profissão, desenvolve um tipo de leitura atenta a detalhes, palavra por palavra, frase por frase. Por não ser o autor do texto, tem distanciamento suficiente para ser crítico. Quando não domina o assunto, pesquisa. Quando tem dúvidas sobre o exato sentido de um termo, consulta dicionários e outras obras. Quando a frase parece pouco clara, às vezes, fruto de tradução literal, vai checar o original ou outras traduções. Como consulta muito, estuda uma variedade de assuntos, o revisor, sendo uma pessoa experiente, consegue sugerir formas de tornar um texto mais fluente, mais claro, correto.
Esse profissional, como já disse aqui em outro momento e agora digo pela última vez, já que este é o último texto deste blog, tem perdido um pouco o seu espaço. Poderíamos pensar que se tornou dispensável com a chegada da inteligência artificial, mas não me parece ser esse o principal motivo. Os sistemas inteligentes, de fato, corrigem os principais erros gramaticais. Não tenho como dizer que não falhem, pois seria necessário fazer muito mais testes do que já fiz. Percebo que pontuar um texto corretamente é difícil para os algoritmos, mas, como disse, não pretendo discutir essa questão.
Tanto quanto os revisores, as colunas de língua portuguesa perderam espaço nos jornais, embora pertençam a uma tradição na imprensa, da qual participei graças ao espaço que tive aqui na Folha, pelo qual serei sempre grata. Houve um tempo em que comentar questões gramaticais fez muito sucesso – e os leitores menos jovens se lembrarão dos ensinamentos do professor Pasquale, que foi colunista deste jornal por muitos anos. Naquela época, no entanto, linguistas não economizavam críticas a esse modelo de texto sobre a língua portuguesa.
Aos poucos, foi ganhando terreno na imprensa a ideia de que usar os termos "certo" e "errado" em língua era algo inadequado, pois o que se chamava de "erro" era apenas um desvio de uma norma padronizada – e o "certo" não passava de obediência a essa mesma norma, que, por óbvio, seria "elitista". Tínhamos, então, uma perspectiva sociolinguística, cuja preocupação era o preconceito contra certos estratos da sociedade, embutido na valorização da norma usada pela classe dominante.
Na ocasião, a solução adotada pela maioria dos colunistas de língua portuguesa da imprensa era explicar, de antemão, que estavam ensinando a "norma culta" ou a "norma padrão", que é aquela consolidada nas gramáticas. A distinção entre uma coisa e outra não era tão relevante quanto é hoje – e veremos em seguida por quê. Faziam essa ressalva e, às vezes, para justificar o ensinamento, lembravam que os vestibulares e concursos públicos exigiam o conhecimento gramatical dessa norma elitista, portanto o professor estava tentando oferecer um serviço. Sempre achei ruim esse argumento, meramente utilitarista, tanto que jamais o usei, mas era comum.
O preconceito linguístico continuou sendo tema de debates, mas parecia sempre uma agenda da esquerda, porque o alvo eram certos estratos sociais, de baixa escolarização. O professor ainda podia argumentar (ou tentar) que pretendia dar ferramentas para essas pessoas se emanciparem na sociedade, compreenderem seus direitos, entrarem nas universidades etc.
Com o tempo, o debate se deslocou para a agenda das minorias identitárias (raciais, de gênero etc.) e surgiram inúmeras cartilhas que arrolavam expressões racistas, homofóbicas, capacitistas e outras, que deveriam ser banidas do uso. A maior prova de que o racismo e os outros preconceitos são estruturais seria então o seu reflexo na expressão linguística. Pouco importariam conselhos gramaticais diante de uma tarefa tão maior, qual seja, a de escrutinar a língua em busca dessas marcas de violência.
Houve um momento em que uma pessoa corrigia a outra por um escorregão, como usar o verbo "denegrir" ou outra coisa desse tipo, e a outra pedia desculpas publicamente. Foi o momento do despertar, quando se passou a buscar a etimologia das palavras, que descortinaria seus vícios de origem. O verbo "denegrir", embora de origem latina, foi considerado uma forma de ofender pessoas de pele negra. A etimologia, quando confirmava o preconceito, era um bom argumento para banir o termo, mas, quando não confirmava, era posta em segundo plano, passando a prevalecer uma espécie de "percepção do significado" por certos grupos. Todos os dias apareciam novas histórias, numa grande mobilização, cuja melhor parte era justamente o engajamento do máximo de pessoas numa corrente de respeito às diferenças. No bojo desse movimento, veio uma forte preocupação com os aspectos psicológicos de quem sofre preconceitos.
Ao mesmo tempo, a multiplicidade de vozes permitida pela internet e, sobretudo, pelas redes sociais acabou democraticamente dando espaço a todos os sotaques e a todos os falares de nosso imenso território, bem como ao contato com pessoas de outros países. As formas de expressão aparentemente se tornaram muito mais livres, "sem edição", o que é espetacular. As redes sociais e os inúmeros blogs vêm revelando a verdadeira "norma culta". Permanece a norma padrão gramatical, por óbvio, mas a nova norma culta se tornou muito mais elástica, refratária a qualquer tentativa de "correção", distanciando-se daquela. Na prática, seguir ou não a norma padrão – em um ou outro ponto, intuitivamente – tornou-se uma questão de escolha pessoal, subjetiva. Uma tentativa de correção ou de revisão, nesse caso, pode ferir a subjetividade do autor – e todos são "autores". Enfim, existe um núcleo básico, sem o qual a comunicação não existiria, mas é rechaçado qualquer tipo de padronização.
Vi recentemente um texto de um grande site de comunicação que trazia algumas "dicas de português", acrescidas de uma observação, que reproduzo aqui: "Ninguém deve ser desvalorizado ou discriminado pela sua forma de falar ou de escrever. O objetivo desta reportagem é explicar como se manter alinhado à variante padrão da língua, especialmente em contextos formais — e garantir que a informação seja transmitida de forma clara". Parece digno de nota o "aviso legal", que demonstra a preocupação do órgão de imprensa com a possibilidade de estar veiculando conteúdo discriminatório, qual seja, a regência e o significado de "corroborar", o significado de "assertivo" e outros tópicos do gênero.
Muitos dos leitores da crônica de Ruy Castro, dados os comentários que publicaram, talvez apreciassem matérias jornalísticas desse tipo. O que se vê é uma tensão entre a percepção de erro de linguagem, muito comum entre a maioria das pessoas, mas dita em voz baixa, e um discurso intelectualizado de desprezo à normatização, como se afrontar regras gramaticais fosse, em si, uma postura progressista.