Imagine o diretor de um estúdio de cinema na Califórnia recebendo um produtor tentando vender o roteiro. A história se passa na tensa capital de uma potência nuclear no século 21. O presidente está assustado com a chance de vazamento dos arquivos judiciais de um notório traficante sexual, outrora amigo íntimo e parceiro de festas, que se suicidou —ou "foi suicidado"— numa cela de prisão.
O chefe de Estado, então, demite o presidente do Banco Central para tentar tirar o defunto pedófilo das manchetes. A moeda do país despenca, a Bolsa e os mercados de títulos também. A inflação avança, e a maior economia do planeta entra em recessão.
Já impaciente, o mandachuva pergunta: há quantos anos ocorreram os crimes? Começaram há 30 anos e se estenderam por 20, atingindo centenas de menores de idade. Mas, se esta república tinha imprensa livre, por que, nos cinco anos após o suposto suicídio, não houve cobertura intensa sobre as grandes transações bancárias, a origem da inexplicável fortuna e os frequentadores de várias mansões, que envolvem um ex-chefe de Estado, um príncipe britânico, o dalai-lama e até o fundador da Microsoft?
O produtor suplicante não consegue oferecer uma resposta que torne sua trama plausível. Havia mais credibilidade no filme "Sacuda o cachorro pelo rabo" ("Mera Coincidência", no Brasil), em que dois assessores inventam uma guerra contra a Albânia para distrair o país do escândalo sexual de um presidente. Mas a trama acima foi oferecida de fato nesta quarta-feira (16) por um editor do circunspecto jornal britânico Financial Times baseado em Washington.
Pela primeira vez, a base radicalmente devotada a Donald Trump reage, indignada pela recusa do presidente em divulgar documentos dos crimes sexuais de Jeffrey Epstein. Durante anos, os donos de maior audiência digital entre a base Maga [acrônimo em inglês para "faça a América grandiosa novamente", slogan de Trump] alimentaram especulações sobre clientes poderosos e acobertamentos.
A ministra da Justiça americana, Pam Bondi, prometia revelações chocantes. O diretor do FBI e seu vice fizeram carreira em podcasts espalhando rumores sobre o caso. Mas quando Bondi, instruída pelo chefe, anunciou que não havia nada para ser divulgado, a panela de pressão conspiratória explodiu.
Como explicar que a violenta invasão do Capitólio transmitida ao vivo não move a agulha da popularidade, mas os arquivos de um pedófilo representam o primeiro grande risco de racha no eleitorado que reconduziu o republicano à Casa Branca? Não estamos testemunhando um súbito ataque de moralidade, mas de reação lógica. O extremismo que apoia o quebra-quebra no Congresso cobra mais demolição, agora que seus inspiradores saíram da franja política para os gabinetes de governo.
Lá Fora
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As pesquisas de opinião já preocupam o presidente, mas novos números divulgados pela CNN impressionam: só 3% dos consultados na população geral se declararam satisfeitos com as explicações oferecidas sobre o caso Epstein e, quando se isola os que se identificam como pró-republicanos, o número sobe apenas 4%, com 44% se declarando insatisfeitos.
Talvez o mais informado jornalista sobre Epstein, Michael Wolff, biógrafo de Trump e interlocutor constante do pedófilo até a véspera da morte, em 2019, detecta um motivo por trás da campanha de indignação movida por aliados trumpistas como Tucker Carlson e Steve Bannon: eles estariam farejando um emergente clima de pato manco e se movimentam para herdar os espólios da Magasfera.