Buenaventura é uma cidade portuária da costa pacífica da Colômbia como muitas outras da América do Sul. A água do mar é gelada. O almoço, acompanhado de bons mariscos. A enorme maioria da população, negra.
A riqueza das mercadorias que chegam ao maior porto do país não fica retida ali. Ao contrário, se esvai, assim como a população jovem que, para se distanciar da pobreza e da insegurança urbana, ruma à cidade grande mais próxima: Cali, a terra da salsa.
O contexto de violência no município gerou um flagelo à população de 430 mil habitantes. De uma cidade com famílias de gerações de pescadores, Buenaventura passou a um território no qual histórias de assassinatos e desaparecimentos povoam as casas, muitas de palafita.
É difícil encontrar quem não tenha ao menos um familiar ou amigo desaparecido, sintoma de uma dor de alcance nacional. Cifras oficiais mostram que há ao menos 127 mil pessoas com paradeiro desconhecido na Colômbia, dos anos 1980 até hoje. Mas o número real, atestam autoridades e projeções estatísticas, passa de 200 mil.
São histórias entrelaçadas aos conflitos armados que por mais de seis décadas permearam o país e não arrefeceram por completo, mesmo após o histórico acordo de paz em 2016.
Os desaparecimentos estão na conta de guerrilhas como as Farc, dos paramilitares e também do próprio Estado, um complicado cálculo que não permite achar apenas um culpado. Estão, ainda, na conta de gangues urbanas, algumas delas criadas após a desmobilização de guerrilhas e milicianos. Buenaventura é um território em disputa entre os Shottas e os Espartanos. No meio, a população.
O mar que circunda a cidade nunca foi amigo de Edilma Castro, 70. As intensas ondas do Pacífico que já não agradavam à colombiana ganharam cor de luto em 2007, quando seu filho Alex Mauricio, estudante de administração de 22 anos, desapareceu. Edilma diz acreditar que o corpo dele está no mar. "Desde aquele ano, começou a minha tortura. Esse mar é um cemitério."
O paradeiro de Alex segue desconhecido nestes quase 20 anos. Um dia, o filho de Edilma recebeu uma chamada telefônica e teve que sair, mas antes lhe pediu que preparasse seu lanche preferido, pão com manteiga e café com leite, para quando voltasse. A comida esfriou na mesa. Horas depois, a namorada de Alex foi à casa de Edilma dizer que ele havia sido assassinado, e seu corpo, esquartejado e lançado ao oceano.
O estuário de San Antonio, conexão de Buenaventura com o mar, é o cemitério ao qual Edilma se refere. Nas últimas décadas o local tem sido usado para desova de corpos que os grupos armados querem esconder. A zona pantanosa e repleta de mangues dos quais mulheres tiram o sustento de suas casas coletando pianguas, pequenos e deliciosos moluscos nativos, tem marés que sobem e baixam todos os dias, uma condição ambiental que acelera a degradação dos corpos.
Ao longo dos últimos anos, em especial após o acordo de paz de 2016, buscas têm sido feitas na região. A Unidade de Busca por Pessoas Dadas por Desaparecidas, órgão nacional criado pós-acordo, estima que ao menos 190 corpos tenham sido lançados no estuário.
São mulheres como Edilma as que majoritariamente lideram as buscas pelas dezenas de milhares de desaparecidos no conflito armado da Colômbia ao lado do Estado e de organizações como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Elas são ao menos 60% dos chamados buscadores. A maioria também é negra.
Elsy Adriana Delgado, 58, procura o filho desde 1999. O mar, que para Edilma se tornou uma espécie de atestado de óbito, para esta mãe já representou esperança. Seu filho, Jesús, um garoto apaixonado por futebol, desapareceu em 1999 aos 14 anos. Ela é a única da família que segue em busca dele.
A princípio Elsy pensou que Jesús poderia ter engrossado a cifra dos chamados polizontes, os jovens que se entranhavam escondidos em uma embarcação no porto de Buenaventura na tentativa de chegar aos Estados Unidos e coronar –vencer o "sonho americano".
Mas, poucos dias antes de sumir, Jesús havia aparecido em casa com uma escopeta, o que também faz a família imaginar que o adolescente pudesse ter sido mais um dos recrutados à força por algum grupo armado. O que resta é apenas a dúvida.
Edilma e Elsy não tiveram boas respostas do poder público na busca por seus filhos, mas não desistem.
"A busca pelas pessoas dadas por desaparecidas se tornou uma atividade absolutamente de cuidado e, portanto, feminizada", diz à reportagem a diretora da Unidade de Buscas, a médica Luz Janeth Forero Martínez, na sede do organismo, em Bogotá.
"A violência e a guerra na Colômbia sempre afetaram desproporcionalmente as mulheres, com a violência sexual, a expulsão de suas casas, por exemplo. No que diz respeito aos desaparecimentos, as mulheres visibilizam muito mais a busca pelos homens, enquanto eles não se empenham tanto, nem fazem uma ação tão contínua e resiliente, em busca das mulheres desaparecidas."
O ápice dos desaparecimentos forçados de pessoas ocorreu justamente no período em que desapareceram os filhos dessas duas colombianas, Edilma e Elsy, entre a segunda metade dos anos 1990 e a primeira dos anos 2000. Há mais de 7.700 pessoas dadas por desaparecidas somente em 2002, um ano recorde. Era o auge do conflito entre as guerrilhas e os paramilitares, estes que praticaram assassinatos seletivos e são responsáveis por mais de 50% dos desaparecimentos, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
O delicado acordo de paz firmado em 2016, como esperado, mudou a realidade e a dinâmica do conflito. Mas não o interrompeu plenamente. Negociações ainda estão em aberto, com vaivéns constantes, entre governo e dissidências dos maiores grupos já desmobilizados.
Os recentes episódios de violência no país, da tentativa de assassinato a tiros do pré-candidato presidencial e senador Miguel Uribe às explosões de carros-bomba em Cauca, atestam isso.
Ainda que em menor escala, desaparecimentos seguem ocorrendo. De 2016 até hoje, o Comitê da Cruz Vermelha no país documentou 1.929 casos de desaparecimentos, sendo 81% deles de civis, entre eles mais de 380 menores de idade.
Há muitos que morreram em contextos violentos e cujo paradeiro dos corpos é desconhecido, mas também há os que foram recrutados, à força ou não, e impossibilitados de se comunicar com a família. O silêncio e a dúvida deixam marcas invisíveis e não têm prazo para acabar.