Quando recebi o convite da Flavia Lima, editora de Diversidade, para escrever um blog na Folha de S.Paulo, há três anos, foi como uma doce vingança para o jovem jornalista que fui e que sonhou trabalhar neste jornal, num tempo em que a diversidade ainda não tinha entrado em pauta.
O mote dos conteúdos que produzo há oito anos é o afroturismo, mas a verdade é que utilizo o "chapéu" turismo para falar de história, de pessoas, de lugares, de movimentos e de cultura. É o que nos motiva a viajar e conhecer novos destinos e experiências.
Como trabalho com a ótica do protagonismo negro, e isso é tudo que tentaram negar e apagar desde a chegada dos primeiros africanos trazidos escravizados para as Américas até os dias de hoje, o Guia Negro é muitas vezes chamado de inovador, revolucionário ou visto como fora da curva. A gente narra as histórias que a história não contou, mas deveria.
São personagens como Negra Jhô, Mestre Amaral, Clarindo Silva, Dete Lima, que brilham no dia a dia e não têm espaço à altura de seus trabalhos e legados na grande mídia. Não vou deixar que histórias como a de Eroldina Soares, minha avó, deixem de ser exaltadas por onde eu estiver ou escrever.
São movimentos culturais como o samba junino, bembê do mercado, negro fugido que ainda não tinham tido o destaque que merecem. Destinos como Belo Horizonte, Brasília, Cali, Paris, Amapá, e mesmo Salvador, Palmares (AL) e o Quilombo Cafundó (SP) que não tinham sido negritadas como deveriam no turismo.
O blog também pautou temas mais ligados a colunas tradicionais de turismo, como as férias das férias; e listas como os oito melhores sambas em que fui em 2023; as dez estátuas de Zumbi dos Palmares que você precisa conhecer.
Os textos conectaram o afroturismo ao turismo regenerativo; mostraram como a liberdade do povo negro passa pelo direito à memória; falaram de como a sazonalidade ainda marca o turismo baiano e os afroempreendedores não conseguem manter seus negócios; questionaram as revistas aleatórias nos aeroportos.
Outros viajantes negros tiveram suas histórias contadas ou narradas em primeira pessoa, como Rebecca Aletheia, Rafael Souza, Natlhaly Castro e Robson Jesus, que conquistou um blog por aqui.
Fizemos denúncias em primeira mão, como um resort que ameaçava o bioma e a comunidade da Ilha de Boipeba, na Bahia, e também a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em São Francisco do Conde (BA), pedindo ajuda e atenção.
Apontamos o dedo para a Prefeitura de Salvador para mostrar que seu programa Salvador Capital Afro excluía atores do afroturismo. Também questionamos a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo no texto que mostrava a ausência de estátuas de pessoas negras nas cidades, e que levou a colocação de placas sinalizando monumentos já instalados.
São consequências diretas do trabalho do Guia Negro e movimentos sociais.
A lista das ruas mais pretas e lindas do Brasil trouxe um contraponto aos lugares tradicionalmente indicados no turismo e ganhou até placa em referência ao texto no bairro da Liberdade, em São Luís (MA).
Vimos movimentos importantes de resgate da história negra avançar como a reforma da Capela dos Aflitos, na Liberdade, e da Estação Saracura Vai-Vai, no Bixiga, ambos em São Paulo. Mas faltou ver a volta do Chafariz do Tebas no ambiente urbano do centro da capital paulista, que ainda esperamos que ocorra.
Mas temos ainda muitas outros temas para tratar: como o São João em São Luís encantados pelo bumba-meu-boi; a festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos, em Laranjeiras (SE); as congadas de Minas Gerais; a festa de São Benedito, de Tia Eva, em Campo Grande; o significado dos carurus em setembro em Salvador; o São Jorge, no Rio de Janeiro; o Beco do Pinto, em São Paulo.
Não deu tempo de escrever também sobre a comunidade kalunga e como eles promovem outro tipo de turismo na Chapada dos Veadeiros (GO); sobre o Sitio Rosa do Vale, que tem uma vinícola e produz o samba da uva (a pisa ganhou nova trilha sonora) em Poço das Antas (RS); os sambas da Barra Funda (SP); sobre a beleza e riqueza das histórias negro-indígenas da travessia entre Manaus e Letícia, na Colômbia, que um dia eu sonho em fazer, e tantas histórias que ainda merecem ser contadas pelo olhar do protagonismo negro.
Novos caminhos
Acabo de lançar o livro São Paulo Negra, em que fui idealizador e organizador, convidando 25 autores para falar da capital paulista com foco em lugares, personagens, movimento e cultura negra.
Uma obra com design moderno feito pela equipe da Grida que documenta o trabalho importante e incansável que estamos fazendo desde 2017 e que foi brindado junto com os oitos anos do Guia Negro no último 5 de julho, em São Paulo.
São muitas as estratégias do povo negro para viver em um país como o Brasil, que tem o racismo em todas as suas estruturas. Sou do time que para além de reparação e igualdade ainda quer vingança por tudo que nosso povo passou.
A gente até tem tirado férias, mas o racismo não. Ele insiste em embarcar conosco onde quer que a gente vá.
Avançamos, mas não temos folga. Nesta semana enquanto vimos o Movimento Negro Unificado (MNU) comemorar os seus 47 anos entrando no Theatro Municipal de São Paulo pela porta da frente e fazendo festa no Salão Nobre, também protestamos pela morte de mais um jovem negro pela polícia. Dessa vez, choramos Guilherme Dias Ferreira, enquanto em 1978 o luto foi por Robson Silveira da Luz.
Se eles combinaram de nos matar e apagar nossa história (uma segunda morte), a gente combinou de ficar vivo e recontar todas as histórias com protagonismo negro. A vingança, nesse caso, é nossa felicidade e nossa potência.
Me despeço dessa coluna com a certeza de que os caminhos e histórias continuam e serão cada vez mais enegrecidos pelo olhar e mãos que os escrevem e os fazem. Não tem volta. Seguimos nossa caminhada negra. Viva o afroturismo!