Às vezes, somos tragadas para a luta, como no caso de Eunice Paiva, e podemos ou não responder à altura. Às vezes, encaramos o horror por nos sentirmos implicados, como no caso de Mércia de Albuquerque Ferreira (1934-2003). Ambas são exemplos de coragem e dignidade fenomenais.
A psicanálise entende que nosso comportamento é pautado por recompensas narcísicas e motivações inconscientes pouco sociáveis. Basicamente, somos egoístas incorrigíveis, e a sensibilidade ao sofrimento alheio requer trabalho e cultivo. Alguns se sentem bem ao realizar gestos de bondade e abnegação; outros gostam mais de si quando são capazes de ter alguém sob seu jugo. É claro que os primeiros recolherão, ao longo da vida, relações mais calorosas e humanizantes, enquanto os outros tenderão a viver na paranoia e na violência.
Está aí Trump como exemplo acabado da pessoa mais medíocre e menos empática que é premiada com o poder de decidir sobre o destino da humanidade. Isso não quer dizer que leve uma vida bacana, apenas que goza da embriaguez dos "podres poderes" a que muitos aspiram.
É por isso mesmo que urge resgatarmos a memória daqueles que, na direção oposta, são capazes de gestos de extrema coragem na luta contra o horror. E, quando se trata de uma mulher nordestina, nascida nos anos 1930, atuando contra as forças da ditadura, é imperativo lembrar.
Mércia registrou, em um diário, sua incansável luta contra a barbárie durante os anos de chumbo. Este precioso documento foi publicado por Roberto Monte (editora Potiguariana, 2023) e chegou às mãos da atriz Andréa Beltrão e da diretora Yara de Novaes. O texto deu lugar à concorridíssima peça "Lady Tempestade", com dramaturgia de Silvia Gomez, em cartaz em São Paulo até 06 de julho.
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A encenação é arrebatadora, com Andréa no auge da sua brilhante carreira. Mércia faz parte do panteão de mulheres como Marina Silva, Nise da Silveira, Lélia Gonzalez, Maria da Penha Fernandes, Erika Hilton e inúmeras outras que lutaram e lutam contra um Estado que prefere repetir a lembrar. Juntas, elas representam as milhões de brasileiras que defendem seus parentes, amigos, alunos, pacientes do horror e da arbitrariedade social.
Mércia foi presa 12 vezes por advogar por perseguidos políticos. Em mais de uma ocasião, foi obrigada a deixar o filho — até quando recém-nascido — sozinho, em plena madrugada, ao ser detida pelos "gafanhotos", como ela chamava os agentes a serviço do golpe de Estado.
Ao lidar com os casos que defendeu, a moça que não quis fazer medicina para não ver sangue colecionou uma infinidade de cenas indescritíveis do que o sadismo humano é capaz de produzir.
Sabendo que a verdadeira compaixão está na capacidade de tratar o outro como um igual, Mércia tomava para si a vergonha pela indignidade alheia, revelando sua ética e sua visão de justiça: somos todos responsáveis.
Num momento em que o depoimento do ex-presidente golpista teve um tom vergonhosamente cordial, frustrando qualquer expectativa do decoro exigido para a ocasião, "Lady Tempestade" é um tapa na cara de nossas autoridades. Dessa experiência proporcionada pela escolha de lembrar, pela luta por justiça e pela potência da arte, fica a dica ao nosso Judiciário: mirem-se no exemplo das mulheres brasileiras.