Ver as imagens do incêndio do Museu Nacional da UFRJ em 2018 foi um daqueles episódios de tristeza surrealista, em que a cabeça da gente passa um tempo se recusando a aceitar o que os olhos estão captando. Creio que falo por muita gente quando digo que andar pelos corredores daquele palacete da Quinta da Boa Vista, no Rio, era como viajar para outros mundos em poucas passadas.
Pedaços desses mundos sumiram para sempre com o fogo, não há dúvida. Mas a equipe do museu, com a mais virtuosa das teimosias, tem feito de tudo para reconstruir esses portais no espaço e no tempo. E, no caso de um calango de mais de 110 milhões de anos, podemos falar de um verdadeiro renascimento.
"Calango" aqui é força de expressão, claro, por mais que o bicho a que me refiro leve a designação popular no nome científico. Quando houve o incêndio, chegou-se a imaginar que o Calanguban alamoi só ficaria preservado nas imagens eletrônicas do fóssil, produzidas antes que ele desaparecesse para sempre.
Sabia-se que o pequeno animal era um membro dos Squamata, o grupo dos lagartos e serpentes atuais, e que ele tinha vindo da formação Crato, um grupo de rochas da atual chapada do Araripe, no Nordeste. Antes do incêndio, ele era conhecido apenas com base no seu holótipo (nome dado ao exemplar fóssil que serve como base para a descrição de uma espécie), e havia dúvidas sobre seu parentesco exato com os grupos atuais e extintos de Squamata.
Em meio aos esforços para recompor o acervo do Museu Nacional, porém, uma coleção particular de fósseis da chapada do Araripe, até então na Alemanha, foi doada para os pesquisadores brasileiros. E um novo estudo, que tem como primeira autora a estudante de mestrado Ednalva da Silva Santos, da Urca (Universidade Regional do Cariri), mostrou que um desses exemplares corresponde a ninguém menos que o C. alamoi.
Melhor ainda: feito o mago Gandalf de "O Senhor dos Anéis", que, após sua luta com o monstro de chamas conhecido como Balrog, voltou à vida ainda mais poderoso, o novo fóssil é uma versão melhorada do que se perdeu. Isso porque ele inclui uma série de detalhes anatômicos que não tinham sido preservados no espécime destruído pelas chamas, como, por exemplo, ossos cranianos.
São detalhes particularmente informativos, ou seja, que trazem dados-chave para interpretar a morfologia do bicho, de apenas 6 cm e pouco de comprimento, e ajudam a encaixá-lo melhor no álbum de família dos lagartos. Agora, já que o holótipo da espécie não mais existe, o novo fóssil passa a ser designado como "neótipo".
Já sabíamos que, além do porte pequeno, tratava-se de um animal com quatro patas curtas e de tamanho proporcional entre si, com indícios de adaptações para escalar árvores. A nova análise filogenética (sobre o parentesco do bicho) indica que ele pertencia ao grupo dos Borioteiioidea. Trata-se de um grupo de lagartos já extinto, mas que tinha parentesco relativamente próximo com os modernos teídeos (entre eles estão os célebres teiús, lagartões muito comuns no Brasil de hoje).
Se a conclusão estiver correta, ela mostra que a fauna de lagartos do Brasil de então estava conectada com a da América do Norte e da Europa, onde os Borioteiioidea eram comuns na época. Sertanejo da gema, mas com primos gringos.