A notícia de que Disney e Universal, duas gigantes do entretenimento, estão processando uma empresa de inteligência artificial por violação de direitos autorais colocou ainda mais lenha em uma fogueira que vem queimando rapidamente nos últimos anos.
O alvo é a startup Midjourney, de São Francisco, nos EUA, que estaria treinando seus bancos de dados com o conteúdo de ambos os estúdios, gerando imagens "inspiradas" em personagens famosos que ganharam as telas do mundo inteiro. De acordo com reportagem do The New York Times, um trecho do processo afirma que a empresa é "uma aproveitadora e um poço sem fundo de plágio".
O debate sobre propriedade intelectual e apropriação de gêneros consagrados no universo artístico não é inédito. Em março passado, imagens no estilo dos premiados desenhos japoneses desenvolvidos pelo Studio Ghibli viraram tendência e inundaram as redes sociais graças a uma função disponível em uma versão do ChatGPT (da empresa OpenAI).
Ainda que as plataformas digitais não permitam a imitação de imagens de artistas vivos, não há proteção legal de copyright para estilos ou gêneros de uma maneira mais geral. Nesse caso, os elementos visuais eram fortemente identificados com os do estúdio fundado em 1985 por Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Toshio Suzuki, e responsável por produções memoráveis como "A Viagem de Chihiro" (2001).
Antes disso, em 2023, uma greve de roteiristas de Hollywood colocou em evidência uma série de questões mal resolvidas sobre as IAs. Um dos estopins para a paralisação era a preocupação do sindicato de atores (SAG-AFTRA) com o uso dessas ferramentas para substituir dubladores, criar vozes sintetizadas e efeitos especiais de rejuvenescimento, por exemplo. Representantes dos atores afirmaram, à época, que estúdios chegaram a pedir o escaneamento do rosto de artistas para que pudessem usar a imagem indefinidamente, em qualquer projeto, sem necessidade de consentimento específico.
De forma parecida, a indústria jornalística também vem sofrendo com a apropriação indevida de seus conteúdos por parte de ferramentas de inteligência artificial generativa, que treinam seus modelos a partir de um gigantesco banco de reportagens, fruto do esforço e da produção autoral de profissionais qualificados para garantir o relato dos fatos de forma plural e independente.
Esse trabalho, decisivo para a democracia e para o desenvolvimento sustentável, exige pesados investimentos de coletivos e de empresas jornalísticas. No entanto, nem jornalistas, nem veículos noticiosos são remunerados por essa mineração de informações, a não ser aqueles com acordos específicos.
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Grandes grupos de comunicação, como The New York Times e The Washington Post, têm firmado contratos com empresas de IA, permitindo licenciamento para treino de LLMs e exibição de resumos, links e determinados trechos, mediante pagamento. Em geral, porém, os publishers afirmam que, para a maioria da imprensa, os valores oferecidos são insuficientes. Em paralelo, veículos noticiosos, mesmo os que já têm acordos, buscam na justiça suas remunerações, a exemplo do que fazem agora Disney e Universal.
O que esses diversos casos mostram é a urgência da ampliação do debate sobre o uso ético e sobre a regulação dessas ferramentas. Há, é claro, inúmeras possibilidades e usos criativos da IA que podem favorecer muitas áreas e indústrias. Mas também é inegável que, sem transparência e regras definidas, corremos o risco de destruir princípios essenciais no universo artístico e jornalístico, como direito autoral, direito de uso de imagens etc., desincentivando a criação e a produção de conteúdo inédito e necessário para a preservação da cultura e para o exercício da democracia.