Poder para quem enche as panelas

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Saí da conversa com a socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, que mediei na última terça-feira, irritada comigo mesma por não ter perguntado sobre um dos capítulos que mais me intrigou na antologia "Estudos africanos de gênero", organizada por ela.

O capítulo 5, "Teorizando o matriarcado na África: sistemas e ideologias de parentesco na África e na Europa", foi escrito pela antropóloga também nigeriana Ifi Amadiume, não por ela. Por isso me detive a fazer perguntas mais gerais sobre a coletânea e os textos de autoria da própria Oyèrónkẹ́. Que bobagem ter perdido a oportunidade e ouvi-la sobre o matriarcado.

Sem idealizações fantasiosas, o capítulo cita diferentes pesquisas que mostram como sociedades africanas tradicionais não organizaram suas estruturas sociais a partir da supremacia masculina. Ao contrário, diferentes povos desenvolveram formas de organização centradas no feminino.

Entre os nnobi, de etnia igbo, "aqueles que comiam de uma mesma panela eram ligados pelo espírito da maternidade comum", explica Amadiume. Essa premissa aparecia em diferentes aspectos da organização social e política. "No matriarcado abrangente, todos os nnobi eram unidos como filhos de uma mãe comum, a deusa Idemili, a divindade adorada por todos os nnobi. Dessa forma, a ideologia matriarcal forneceu a lógica da administração geral".

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Os quatro dias da semana levavam os nomes das deusas Oye, Afo, Nkwo, Eke. O calendário anual celebrava o ciclo de vida e de produtividade de deusas. As mulheres nobres tomavam decisões coletivamente, por consenso, e controlavam os mercados. "Em Nnobi, eram as mulheres com o título de Ekwe, as representantes terrenas da deusa Idemili, que controlavam o Conselho das Mulheres da vila, tendo direito de veto geral nas assembleias da vila."

Ao mesmo tempo, nas famílias, a descendência era estruturada a partir da linhagem masculina. A herança era passada de homens para filhos homens, assim como o acesso à terra. Esse sistema patriarcal umunna de parentesco coexistia com o sistema político matriarcal ekwe, em uma relação dialética e estrutural, segundo Amadiume.

Além de feminino e masculino, também existia uma classificação de pessoa, nmadu, que não considerava gênero ao atribuir papéis e responsabilidades a pessoas. Segundo Amadiume, a base para essa classificação é o coletivismo matriarcal não discriminatório, "em oposição à cultura política do patriarcado, imperialismo e violência".

Digeria essas informações e meu arrependimento por não ter provocado o debate, quando vi a fotografia de uma palestina em Gaza, segurando no colo uma criança famélica, de costelas visíveis e pernas muito finas. No olhar daquela mulher, que não tem o poder de alimentar o filho, há a dignidade usurpada de seus braços pela cultura política do patriarcado, do imperialismo e da violência.

As panelas vazias nas mãos de mulheres cansadas e indignadas, em outra imagem de Gaza, são o avesso da conexão matriarcal igbo entre os que comiam na mesma panela. Observadas por mim, de barriga cheia, são alvos prioritários da política de morte supremacista.

Como mulheres palestinas, israelenses, nigerianas, brasileiras podem enfrentar a violência patriarcal? Não para impor um poder de mulheres sobre homens. Mas para distribuir poder entre as pessoas, na gestão coletiva da vida, com criança alimentada e panela cheia? A quem lê esta coluna e a mim, não posso deixar de perguntar.

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