O argumento de que o governo Lula inventou agora –ou inventou anos atrás e hoje ressuscita– a luta política entre ricos e pobres não resiste a uma dose de etimologia.
Dois milênios antes do debate atual sobre justiça tributária, a palavra latina "tributum" já queria dizer aquilo que só pés-rapados pagavam.
Tributo é um dos frutos de "tribus", tribo, divisão do povo romano que, como em outras culturas da Antiguidade, englobava pessoas ligadas por território e parentesco.
Ainda no latim clássico, o sentido geográfico de "tribus" se desdobrou no sentido classista de "povo, classe pobre (em oposição aos senadores e aos cavaleiros)". As palavras estão no dicionário latino-português de Santos Saraiva, obra do século 19 insuspeita de ser veículo da esquerda populista.
Encontramos o DNA de "tribus" em vocábulos como contribuição (o que se dá para o bem de todos), distribuição (a repartição de algo entre os membros da coletividade), retribuição (o que se devolve em paga a um benefício recebido de outro) e, claro, tribuno (magistrado que defendia os interesses do povo no Senado romano).
No entanto, é no "tributo", no imposto, na taxação que se revela o fosso estrutural entre quem tem muito e quem tem quase nada. O tributo nasceu em tempos perdidos nas amnésias da história para nomear a grana que os membros mais pobres de uma tribo tinham de pagar à elite, aos donos da terra, para nela poderem trabalhar, fazer negócios, viver.
O tributo se chamava imposto porque era imposto mesmo, de impor, "imponere". Vigorava a proverbial lei do mais forte, que muitas vezes é a lei do mais cruel.
Sim, estamos falando de tempos extintos –ou não? Se a etimologia deixa a gente ler mensagens de outras eras no corpo das palavras, acontece de visões de mundo arcaicas darem um jeito de se perpetuar na linguagem política de hoje.
O Estado moderno é –ou deveria ser– um avanço, um tributador diferente daqueles donos de tudo de antigamente, que Santos Saraiva chamou de "senadores e cavaleiros (nobres)". Um arrecadador e distribuidor mais justo.
A regressividade do sistema tributário brasileiro –para resumir, quanto mais a pessoa ganha, menos ela paga– é uma marca de atraso sem justificativa econômica ou moral. Até naquele capitalistólatra país do Norte a taxação é progressiva –embora Trump prometa estragar isso se puder.
Os impostos brasileiros são do tempo em que o epigramista romano Marcial (38-90 d.C.) dizia que "amigos ricos são rápidos na ofensa".
Aí vêm senadores e cavaleiros, deputados e outros indignados proclamando ser absurdo que um bilionário, mesmo um que gerencie jogatina, seja obrigado a pagar imposto –ainda que uma fração do que pagamos eu e você.
Fernando Henrique Cardoso disse em 2015, em entrevista a Celso Rocha de Barros, que tentar "mexer nisso", ou seja, tornar menos regressivos os impostos no Brasil, "é muito difícil porque os interesses estão organizados no Congresso".
Tão organizados que o próprio governo dificilmente teria cutucado esse vespeiro se lhe dessem alternativa.