Por mais de uma década, rebeldes lutaram contra as forças do ditador sírio, Bashar al-Assad. Alcançaram o objetivo em dezembro, encerrando uma guerra civil que matou mais de meio milhão de pessoas. A crise, no entanto, ainda está longe de seu fim. É preciso, agora, reconstruir a Síria.
Há, por um lado, a questão econômica. Os embates dos últimos anos destruíram cerca de 30% das residências e fizeram com que 6 milhões deixassem o país. Hoje, 90% vivem abaixo da linha da pobreza, segundo levantamentos das Nações Unidas.
Mas existe também o desafio político. Assad foi substituído por Ahmad al-Sharaa, cujo passado causa reticência em grande parte da população. Sharaa, afinal, esteve ligado no passado à rede terrorista Al Qaeda. A pressão é alta para que ele prove que é capaz de governar uma democracia.
Um eventual fracasso nessas duas missões teria um custo alto, afirma o analista Kawa Hassan, do programa de Oriente Médio do Centro Stimson. "Se o governo não iniciar uma transição democrática e inclusiva, a integridade do Estado pode estar sob ameaça", diz. "Tem muito trabalho a ser feito."
A dinastia dos Assad chegou ao poder em 1970. Hafez al-Assad governou o país de maneira autoritária e violenta até sua morte, em 2000. Seu filho, Bashar, herdou o cargo sob a expectativa de abertura política. Frustrou essas esperanças, porém, e guiou a Síria para uma guerra civil.
Sharaa, por sua vez, é uma espécie de militante radical reformado. Ele lutou no Iraque, onde foi inclusive detido pelas forças americanas. Usava, na época, o codinome Abu Muhammad al-Jolani, pelo qual ainda é conhecido. Foi só em 2016 que Sharaa rompeu os laços com a Al Qaeda.
Sua milícia, chamada Hayat Tahrir al-Sham, chegou a controlar a província de Idlib, no norte da Síria. Lutou contra os terroristas da Al Qaeda e do Estado Islâmico e governou com algum comedimento, no que convenceu alguns de que tinha abandonado o seu passado radical.
Com a queda de Assad em dezembro, Sharaa assumiu a Presidência e instituiu um governo de transição de cinco anos. Ele continua prometendo democracia —enquanto concentra o poder em suas mãos. "A trajetória atual não nos tranquiliza", afirma Hassan.
Em março, Sharaa instituiu uma declaração constitucional que lhe deu poderes executivos quase ilimitados. Sem ter sido eleito, ele pode nomear juízes, passar decretos e reformar ministérios. Já colocou familiares no cargo, inclusive, no que se assemelha ao regime anterior.
Há frequentes violações dos direitos humanos, diz Hassan, além de episódios de violência sectária. A maior parte da população da Síria segue a vertente sunita do islã, defendida por Sharaa e suas forças. Existem, no entanto, diversas minorias, como alauítas, drusos e curdos.
Em março, embates no litoral deixaram mais de 1.600 alauítas mortos. A violência foi interpretada, em parte, como uma vingança —a família Assad, afinal, é alauíta. Semanas depois, forças do governo lutaram contra comunidades drusas no sul do país, com ao menos cem vítimas.
No meio-tempo, há a questão do que fazer com os curdos no norte do país. As forças curdas foram fundamentais no combate à ditadura de Assad e exigem que seu sacrifício seja recompensado com algum grau de autonomia. Existem hoje negociações para incorporá-los ao Exército.
"Sharaa precisa iniciar um diálogo sincero", diz Hassan. Isso significa, em alguma medida, convencer alauítas, drusos e curdos, entre outros grupos, a aceitar a sua autoridade. Sem isso, "nem mesmo o apoio internacional vai ajudá-lo a construir um Estado diferente do de Assad".
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Tudo isso tem de ser feito em um cenário global que vem mudando de maneira rápida. "Muito aconteceu ao redor da Síria nestes seis meses, e parece que se passaram anos", diz Hassan. Isso inclui o enfraquecimento do Irã e de seus aliados —Hezbollah e Hamas— em confrontos com Israel.
Há bastante expectativa, agora, de que Sharaa altere o alinhamento internacional sírio e entre em algum tipo de acordo de normalização com Israel. É no que aposta o governo de Donald Trump, diz Hassan. Seria uma maneira de o presidente americano dizer que, por fim, conduziu a região à paz.
O percurso, no entanto, não deve ser tão fácil. Síria e Israel têm uma rivalidade histórica, incluindo a tomada israelense das Colinas de Golã na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Aproveitando-se da queda de Assad, Israel fez mais de 700 ataques aéreos na Síria nos últimos meses e ocupou parte do território fronteiriço.