A retórica racista do Vox, marcada por termos como "invasão migratória" e "remigração" —uma variante da teoria da grande substituição, criada pelo escritor francês Renaud Camus—, sugere a expulsão de até oito milhões de pessoas, incluindo cidadãos nascidos na Espanha.
A ideia é inspirada nas ações do presidente americano Donald Trump, que tentou restringir o direito à cidadania automática para filhos de imigrantes em situação irregular. No entanto, essa iniciativa foi considerada inconstitucional por um tribunal de apelações dos EUA.
Na quarta-feira (23), o Tribunal de Apelações do 9° distrito decidiu manter o bloqueio à ordem executiva de Trump que buscava encerrar o direito à cidadania para todas as pessoas nascidas no território americano, um princípio consagrado na 14ª Emenda da Constituição americana há mais de 150 anos. A corte concluiu que e decisão de Trump viola diretamente a Constituição.
O juiz Ronald Gould afirmou que limitar a suspensão da ordem apenas a certos estados seria ineficaz, dada a mobilidade entre regiões com regras distintas. A Suprema Corte, embora tenha evitado se pronunciar sobre o mérito constitucional da ordem presidencial, reconheceu que ações coletivas podem ser usadas para barrar medidas executivas amplas.
Esse precedente jurídico nos EUA reforça os limites constitucionais que também existem na Espanha. Especialistas apontam que, para implementar a proposta da sigla de ultradireita Vox, seria necessário modificar a Constituição espanhola, o Código Civil e diversos tratados internacionais —incluindo a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Imigrantes impulsionam emprego na Espanha
Na Espanha, deportações só podem ocorrer de forma individual, com base em decisões fundamentadas e respeitando o devido processo legal. Expulsões sumárias, como as sugeridas pelo Vox, são ilegais. Além disso, retirar a cidadania de pessoas nascidas no país é juridicamente impossível, salvo em casos excepcionais de crimes graves.
A proposta do Vox também ignora o impacto econômico da imigração. Com uma população envelhecida e baixa taxa de natalidade, a Espanha depende da força de trabalho imigrante para sustentar seu sistema previdenciário e manter o dinamismo econômico.
Especialistas e estatísticas oficiais destacam o papel crescente dos imigrantes na economia espanhola. Segundo dados recentes do Ministério da Inclusão, Segurança Social e Migrações, divulgados em março, 13,7% dos contribuintes à Previdência Social espanhola são estrangeiros —quase 900 mil a mais do que no mesmo mês de 2019. No último ano, 41% dos novos empregos criados foram ocupados por trabalhadores imigrantes.
Entre os contribuintes nascidos fora da União Europeia, os principais grupos são originários do Marrocos, seguidos por Colômbia, Venezuela e China. Lucila Rodríguez, diretora da Fundação PorCausa, alerta para o risco de normalização de medidas radicais por meio da chamada "janela de Overton" - estratégia discursiva que exagera propostas para tornar ações menores socialmente aceitáveis. "O Vox pode não expulsar oito milhões, mas 10 mil, e isso já seria um problema, especialmente se outros governos seguirem o exemplo", afirma.
A proposta do partido Vox, embora politicamente eficaz para mobilizar sua base, esbarra em barreiras legais robustas e em princípios democráticos fundamentais. O caso americano mostra que mesmo em sistemas com maioria conservadora, como a Suprema Corte dos EUA, há limites constitucionais que protegem direitos básicos como a cidadania por nascimento.
A tentativa de importar modelos autoritários de gestão migratória, como o de Trump, encontra resistência jurídica e social, e levanta questões profundas sobre o futuro da democracia, da inclusão e da convivência plural na Europa.
Discurso de ódio e violência: Torre Pacheco em chamas
Nos últimos dias, imagens da cidade de Torre Pacheco em chamas circularam pelo mundo, após uma série de distúrbios provocados por grupos ligados à ultradireita que convocaram ações violentas contra imigrantes. Os episódios ocorreram dois dias após o partido Vox propor publicamente a deportação de milhões de pessoas, e foram desencadeados por um ataque cometido por jovens de origem magrebina contra um homem de 68 anos, identificado como Domingo.
O caso gerou indignação local, mas também foi explorado por grupos extremistas como "Deport Them Now" e "Desokupa", que se mobilizaram por meio de redes como Telegram e Signal para atacar pessoas do norte da África, independentemente de qualquer envolvimento com o crime.
Moradores de Torre Pacheco relataram ao site do canal de TV France 24 preocupações com crimes como furtos em residências e veículos, que atribuem majoritariamente a jovens magrebinos. No entanto, também reconhecem que a maioria da população migrante está integrada e trabalha na economia formal.
"Cerca de 90% da delinquência aqui vem desse grupo. Talvez haja 10 mil muçulmanos em Torre Pacheco, que são excelentes pessoas, mas alguns vêm apenas para cometer crimes, principalmente os jovens. Não é culpa dos imigrantes, é culpa dos imigrantes criminosos. Há muitos que são bons vizinhos, trabalhadores, mas também há um percentual que vive do tráfico de drogas e dos furtos", afirmou José Luis, morador da cidade, que preferiu não divulgar o sobrenome e contou ter sido vítima de roubo duas vezes.
Imigração e criminalidade: o que dizem os dados na Espanha
Apesar da percepção de que a imigração estaria ligada ao aumento da criminalidade, os dados nacionais apontam em outra direção. Segundo o Boletim de Criminalidade do primeiro trimestre de 2025, divulgado pelo Ministério do Interior da Espanha, houve uma queda de 2,8% nas infrações penais em relação ao mesmo período do ano anterior - passando de 606.377 para 589.683 delitos registrados pelas forças de segurança.
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Embora existam casos de imigrantes envolvidos em crimes, as autoridades reforçam que a criminalidade não cresce com a imigração. A realidade é mais complexa e exige uma análise cuidadosa.
Percepções sociais: controle, não quantidade
Um estudo da organização More in Common revela que as atitudes da sociedade espanhola em relação à imigração são diversas e cheias de nuances. Realizada entre 29 de março e 5 de abril de 2025, a pesquisa mostra que os espanhóis estão mais preocupados com o controle da imigração do que com o número de imigrantes.
"O controle, aos olhos da sociedade, significa garantir que o país mantenha a capacidade de administrar suas fronteiras, com regras claras que evitem sofrimento ou discriminação e facilitem a integração dos migrantes ao mercado de trabalho", explica Luis Aguado, presidente da organização na Espanha.
Segundo o levantamento:
- 44% consideram a imigração uma necessidade que deve ser bem administrada;
- 19% a veem como uma oportunidade para o país;
- 29% a encaram como uma ameaça que precisa ser combatida.
Apesar das tensões, a Espanha se destaca como o país europeu com a percepção mais positiva sobre a imigração. A exceção são os eleitores da ultradireita, que majoritariamente associam a imigração a riscos e ameaças.