Há alguns anos, recebi uma mulher enfrentando quimioterapia para tratamento de um câncer. Ela se espantou que eu quisesse saber o que a levava a iniciar uma análise, acreditando que o processo pelo qual passava já justificasse sua vinda. Expliquei que não há perrengue que justifique uma análise e que é necessário reconhecermos qual é a nossa parte no sofrimento do qual nos queixamos. E qual seria "sua parte", a parte analisável, digamos assim, diante do câncer? No caso dela, era a crença de que a causa da doença era seu ressentimento e que, livrando-se dele, não teria recidivas. Junto com o diagnóstico, vinha a culpa.
O psiquismo afeta nosso corpo, está aí a psicossomática para nos iluminar sobre o tema, mas uma relação de causa e efeito simplista sobre como ele opera só serve para imputar culpa e sofrimento a quem já está passando maus bocados. Amar a vida e agarrar-se a ela faz diferença para enfrentarmos as grandes travessias da vida, mas não impede que elas aconteçam.
Radiação solar, comida ultraprocessada, estímulos que afetam o sono, herança genética, tabaco, álcool, poluição do ar, agrotóxicos, corantes e conservantes artificiais, exposição a produtos químicos diversos, ingestão de microplásticos, obesidade, sedentarismo, estilo de vida moderno: são algumas das variáveis associadas ao surgimento de tumores malignos. Ainda assim, nosso egocentrismo nos leva a perguntar por que "fizemos" um câncer.
Qualquer interpretação que reduza todas essas variáveis a motivações inconscientes é violenta. O paciente fará suas hipóteses, e elas revelarão suas fantasias mais secretas, aquelas que pautam sua vida. Ao embarcar numa ideia tosca de causalidade, tentando aplacar a angústia diante do não saber, o profissional, o familiar ou o amigo perdem a oportunidade de calar a boca.
O psicanalista quer saber qual é a interpretação que o paciente faz da sua vida. Um paciente revela a crença, carregada de culpa, de que seu ressentimento teria se materializado em uma doença fatal; outro acredita que ela é um castigo por suas fantasias incestuosas. Cabe à análise resgatar essas e outras hipóteses, pois elas operam como uma bússola invisível, que pode nos empurrar para becos sem saída.
Se não se pode afirmar o que "faz" um câncer, pode-se reconhecer o que fazemos com ele. É aí que a postura diante dos limites da realidade do corpo e do desejo de viver faz muita diferença.
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Paloma Shemirani morreu aos 23 anos se recusando a tratar um linfoma não Hodgkin com 80% de chances de cura. A britânica, formada em Cambridge, seguiu as recomendações da mãe, Kate Shemirani, que era enfermeira e havia sido demitida do hospital onde trabalhava por disseminar teorias conspiratórias contra vacinas. Não sabemos o que causou o linfoma, mas sabemos o que aumentou em 80% suas chances de morrer: uma atitude alienada ao desejo materno, comportamento que os irmãos da vítima, revoltados com o desfecho do caso, percebiam desde muito antes do diagnóstico.
Diante da profusão de diagnósticos de tumores malignos à nossa volta, aqui vai a regra de ouro: escutar mais e palpitar menos.