A situação de aperto nas contas públicas tem tido o efeito colateral de multiplicar o uso de brechas para gastar fora das regras fiscais ou até mesmo do Orçamento, com efeitos negativos sobre a priorização de recursos públicos, a transparência e o endividamento do país.
O emprego desses expedientes perpassa diferentes gestões, embora economistas vejam indícios de intensificação da estratégia durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os instrumentos são variados e envolvem o uso do setor privado para bancar ações de responsabilidade do governo, a criação de instituições para fugir do teto de gastos, a execução de políticas públicas por meio de fundos e a flexibilização de regras fiscais para excluir despesas.
O limite para os gastos públicos e o avanço das despesas obrigatórias sobre o espaço disponível (muitas vezes devido a resistências políticas em fazer mudanças ou reformas) são o pano de fundo para esse movimento.
Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), pelo menos 55 países adotam uma regra que limita despesas, que traz previsibilidade sobre a trajetória fiscal, mas também impõe desafios.
"A regra de despesa tem esse defeito: você gera um desvio finalístico importante. Se um órgão gerar muita arrecadação própria, ele não pode reverter isso [em gastos] porque está limitado pela despesa", diz o economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV Ibre.
Segundo ele, a situação gera dois problemas: desincentiva a melhor gestão desses ativos e induz a criação de subterfúgios para executar políticas fora do Orçamento.
A realização dos chamados investimentos cruzados é um exemplo de subterfúgio, ao delegar ao setor privado a execução de despesas que caberiam à União. Isso já foi feito em leilões de concessão ou privatização, quando o governo abriu mão de uma receita para não precisar colocar mais uma despesa no Orçamento.
No leilão da tecnologia 5G, em 2021, o governo reduziu os valores de outorga em troca do compromisso dos vencedores de investir R$ 3,1 bilhões na conectividade das escolas. A aplicação dos recursos é definida por um grupo técnico presidido por um representante da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), sem passar pelo Orçamento.
Em 2024, o TCU (Tribunal de Contas da União) apontou falta de clareza sobre metas, critérios, beneficiários e atendimento às prioridades legais. Também criticou a demora para a prestação de contas dos estados contemplados pelos repasses, prevista só para 2027. Procurada, a Anatel não respondeu.
Na privatização da Eletrobras, concluída em 2022, a empresa firmou um compromisso de aplicar R$ 8,75 bilhões ao longo de dez anos na revitalização de bacias de rios e na redução do custo da energia na Amazônia Legal. Até agora, foram aportados R$ 2,8 bilhões, já considerando a correção anual dos valores pela inflação.
A aplicação dos recursos é decidida por três comitês, dois deles presididos pelo MIDR (Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional) e outro pelo MME (Ministério de Minas e Energia). As informações sobre projetos e execução não são centralizadas. Além disso, o número de ações selecionadas é maior do que o daquelas que possuem os custos discriminados em portais públicos.
O MIDR disse que todo o processo é objeto de avaliação e emissão de relatórios por empresa de auditoria independente, com prestação de contas encaminhada à CGU (Controladoria-Geral da União). O ministério disse ainda que a responsabilidade pelas contratações é da Eletrobras, hoje uma empresa privada. O MME não respondeu.
As instituições federais de ensino, por sua vez, ficaram anos sem poder ampliar investimentos, apesar de faturarem com aluguéis, consultorias e projetos. Ao propor o novo arcabouço fiscal, o governo Lula tentou corrigir isso excluindo do limite as despesas de universidades e institutos federais bancadas com receitas próprias. A decisão abriu precedente para o Judiciário reivindicar tratamento semelhante.
Além disso, a lei também excluiu os gastos das "demais instituições científicas, tecnológicas e de inovação". Desde então, já criaram seus próprios institutos ou fundações órgãos como AGU (Advocacia-Geral da União), Abin (Agência Brasileira de Inteligência), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o próprio TCU.
"O ovo da serpente está na lei do arcabouço fiscal. Todo mundo agora terá crise identitária: será que eu também não produzo ciência, tecnologia e inovação de algum modo?", critica a economista Selene Nunes, especialista em finanças públicas. "Arranjam uma desculpa e, com base nisso, ficam fora do teto de gastos. Fica aberta a avenida para qualquer um."
A AGU também encontrou uma forma de se apropriar de receitas públicas para driblar outro teto, o do funcionalismo, que limita a remuneração dos servidores a R$ 46.366,19 ao mês.
Desde 2017, uma entidade de natureza privada criada para pagar honorários aos membros da AGU, uma espécie de bônus. Como mostrou a Folha, essa entidade já recebeu R$ 15,8 bilhões desde a sua criação, dos quais R$ 11,8 bilhões vieram de encargos cobrados sobre contribuintes que deviam tributos à União —uma receita que deveria ser pública.
No governo Lula, cresceu o uso de fundos para executar políticas públicas fora do Orçamento. Foi assim com o programa Pé-de-Meia, que paga bolsas para incentivar a permanência de jovens no ensino médio, e com a primeira proposta de reformulação do Auxílio-Gás, que previa uma triangulação de recursos fora do Orçamento e da qual o governo precisou recuar devido à repercussão negativa.
Técnicos do governo argumentam que, no caso do Pé-de-Meia, o repasse de recursos para o fundo passa pelo Orçamento, à semelhança do modelo aplicado no programa Minha Casa, Minha Vida, que envia verbas para o FAR (Fundo de Arrendamento Residencial).
Manoel Pires diz que a existência do fundo dá mais flexibilidade, sobretudo na execução de obras de grande porte (que se estendem por mais de um ano), mas seu uso não se justifica no caso de despesas correntes.
"O Pé-de-Meia tem mais cara de Bolsa Família. Se você está fazendo um desembolso mensal para aquela pessoa, é uma despesa corrente. E mesmo no caso do Minha Casa Minha Vida, tem problemas de transparência que poderiam ser melhorados", diz.
Mais recentemente, uma nova PEC (proposta de emenda à Constituição) dos precatórios exclui as despesas com sentenças judiciais do limite de gastos a partir de 2027, mantendo os valores apenas na conta de resultado primário —ainda assim, de forma parcial, começando em 10% e subindo mais dez pontos a cada ano.
"Com os precatórios fora, vai abrir espaço para a despesa discricionária ficar num patamar mais elevado, e o déficit público fica mais alto, a dívida pública cresce um pouco mais", alerta Pires.
Técnicos do governo e especialistas avaliam que boa parte das brechas usadas hoje para ampliar gastos fora das regras ou do Orçamento poderia ser eliminada a partir da aprovação de uma nova lei de finanças, com conceitos mais claros do que é receita e despesa orçamentária e quando cabe o uso de fundos para executar políticas de governo.
CASOS DE DESPESAS FORA DAS REGRAS OU DO ORÇAMENTO
Leilão do 5G
Executivo arrecadou menos em troca de um compromisso das empresas para aplicar R$ 3,1 bilhões em conectividade de escolas, investimentos realizados fora do Orçamento.
Privatização da Eletrobras
Empresa se comprometeu a aportar R$ 8,75 bilhões em dez anos para revitalizar bacias de rios e reduzir o custo da energia na Amazônia Legal, também fora do Orçamento.
Instituições científicas, tecnológicas e de inovação
Lei do arcabouço fiscal preve que os ICTs podem executar despesas fora do limite de gastos quando custeadas com receitas próprias. Desde então, órgãos como AGU, Abin, IBGE e o próprio TCU já criaram suas instituições de ciência e tecnologia para poder ampliar gastos.
Pé-de-Meia
Governo criou um fundo de natureza privada para gerir os recursos do programa, que paga bolsas de incentivo à permanência no ensino médio. Segundo especialistas, o desenho dificulta o acompanhamento da política e a transparência.
Auxílio-Gás
Proposta original do governo para reformular o programa previa uma triangulação de recursos, com repasse direto de receitas que seriam arrecadadas com o pré-sal para a Caixa, sem passar pelo Orçamento. Desenho não avançou, devido à repercussão negativa.
Precatórios
PEC 66, em tramitação no Senado, autoriza retirar do limite de despesas e da meta fiscal os gastos com sentenças judiciais a partir de 2027. Os valores voltarão a ser contabilizados na meta, mas de forma gradual. Para economistas, proposta levará ao aumento da dívida pública.