O Hamas está passando pela pior crise financeira e administrativa em seus 40 anos de história, enfrentando grandes dificuldades para reunir os recursos necessários para continuar lutando contra Israel e governando a Faixa de Gaza.
Com os cofres esvaziados, o braço armado do grupo terrorista não consegue mais pagar os salários de seus soldados, embora ainda consiga recrutar adolescentes para tarefas como vigiar posições ou colocar explosivos em rotas militares israelenses, segundo Oded Ailam, ex-oficial de alto escalão da inteligência israelense, e membros das Forças de Defesa de Israel.
O grupo também não conseguiu reconstruir os túneis e centros de comando subterrâneos que foram destruídos pelos israelenses. Antes de ser morto por um ataque aéreo há dois meses, o comandante militar do Hamas, Mohammed Sinwar, havia se refugiado em um esconderijo de um cômodo a dez metros abaixo de um hospital no sul de Gaza —uma estrutura modesta se comparada ao vasto complexo subterrâneo encontrado anteriormente no norte, com salas espaçosas revestidas de azulejos brancos, portas à prova de explosões, ventilação mecânica e espaço para estoques de armas.
"O Hamas não está reconstruindo seus túneis, não está pagando seus soldados treinados —está apenas sobrevivendo", disse Ailam.
O governo do Hamas também não consegue pagar os salários de policiais e funcionários de ministérios em Gaza, que o grupo terrorista governa desde 2007, nem continuar pagando pensões às famílias de soldados mortos, segundo Ailam, um policial palestino local e dois outros moradores de Gaza.
Ibrahim Madhoun, analista de Gaza próximo ao Hamas, afirmou que o grupo não estava preparado para uma guerra que durasse mais de um ano e teve que adotar medidas de austeridade, como cortar salários e custos administrativos, tentando manter alguns serviços básicos —como comitês de emergência para coleta de lixo e gestão de combustível para geradores— mantendo assim uma aparência mínima de autoridade governamental.
Segundo Madhoun, parte do esforço vem da própria comunidade local e da "forte rede social que ajuda a amortecer os impactos".
Autoridades do Hamas não responderam perguntas da reportagem sobre a situação financeira do grupo.
Nos primeiros meses da guerra, o Hamas sobreviveu cobrando taxas sobre cargas comerciais e confiscando bens humanitários, segundo moradores de Gaza e ex-autoridades israelenses e estrangeiras. De acordo com uma pessoa de Gaza que trabalhou na fronteira, agentes à paisana do Hamas costumavam inspecionar mercadorias nas passagens de Rafah (até seu fechamento no ano passado) e Kerem Shalom (sob controle israelense), além de vistoriarem armazéns e mercados. A maioria das fontes palestinas desta reportagem falou sob anonimato por medo de represálias.
A ONU, a Comissão Europeia e grandes ONGs internacionais afirmam não haver provas de que o Hamas tenha roubado sistematicamente suprimentos, e o governo israelense não apresentou evidências.
"O Hamas lucrou especialmente com ajuda humanitária que não lhe custou nada, mas que eles revendiam por preços inflacionados", disse um empreiteiro que trabalhou nos pontos de fronteira.
Ao longo de quase dois anos, ele afirma ter visto o Hamas exigir cerca de 20 mil shekels (aproximadamente R$ 32 mil) de comerciantes locais, sob ameaça de confiscar os caminhões. Servidores do governo do Hamas teriam ameaçado matá-lo ou acusá-lo de colaborar com Israel se ele não desviasse ajuda humanitária. Ele recusou, mas disse conhecer ao menos dois motoristas de caminhão mortos por se recusarem a pagar.
Com o cerco imposto por Israel a Gaza em março, logo após o fim de um cessar-fogo de dois meses, a maior parte dessas cargas foi interrompida.
O Hamas também não respondeu aos pedidos de comentário sobre as acusações de cobrança de taxas, confisco de cargas comerciais, roubo de ajuda humanitária ou extorsão de empresários locais.
Hamas sob pressão
O Hamas iniciou a atual guerra devastadora ao atacar Israel em 7 de outubro de 2023, matando cerca de 1.200 pessoas e sequestrando outras 250, levadas como reféns para Gaza. Desde então, a ofensiva militar israelense matou mais de 58 mil pessoas —em sua maioria mulheres e crianças— segundo autoridades de saúde de Gaza.
Um oficial militar israelense, sob anonimato, afirmou que o Hamas perdeu 90% de sua liderança e de seus estoques de armas durante o conflito.
Nos primeiros meses, o grupo escondeu dinheiro e suprimentos em túneis subterrâneos, mas os estoques estão acabando. Em março de 2024, o exército israelense afirmou ter confiscado mais de US$ 3 milhões (cerca de R$ 16,69 milhões) sob o hospital al-Shifa, em Gaza.
Ainda assim, o Hamas lucrou com o comércio e a ajuda humanitária, arrecadando centenas de milhões de dólares, segundo autoridades militares e de inteligência israelenses. Eles alegam que o grupo confiscou cerca de 15% de mercadorias como farinha destinados a palestinos famintos — parte teria sido dada a aliados, e parte revendida.
Ahmed Fouad Alkhatib, líder da organização Realign for Palestine, afirmou que o Hamas contou com o agravamento da crise humanitária para encurtar a guerra. "A estratégia do Hamas dependia do sofrimento das pessoas em gaza", disse. "Mas quando essa estratégia falhou, o grupo insistiu nela, porque não tinha outra alternativa diante da reação feroz de Israel e da incapacidade do mundo de detê-la."
"Hamas vê a ajuda humanitária como sua moeda mais importante", disse um morador de Deir al-Balah que auxilia na distribuição de suprimentos. Segundo ele, enquanto a maioria da população luta por água e comida, aliados do Hamas receberam caixas destinadas à população em geral.
As Forças de Defesa de Israel afirmam que o Hamas também desviou ajuda humanitária de agências como a ONU e ONGs. O governo israelense usa essas acusações para justificar restrições severas à entrada de suprimentos e bombardeios a depósitos. Membros da extrema-direita israelense defendem tais medidas como forma de pressionar o Hamas e fazer a população se voltar contra o grupo.
No entanto, Israel nunca apresentou publicamente provas de desvio sistemático de ajuda humanitária da ONU. Nem mesmo em reuniões privadas com ONGs e autoridades ocidentais, segundo mais de uma dúzia de entrevistas com representantes de entidades e diplomatas.
Carl Skau, vice-diretor do Programa Mundial de Alimentos da ONU, disse que o desvio sistemático de ajuda humanitária "não tem sido um problema para nós". A WFP relatou apenas três episódios de saque em quase dois anos. "Temos mecanismos de mitigação com base em décadas de experiência em zonas de conflito", afirmou.
Outras grandes ONGs internacionais também negam qualquer desvio sistemático por parte do Hamas.
No entanto, um oficial egípcio afirmou que o roubo de alimentos pela organização de fato ocorreu. "O Hamas está usando a ajuda humanitária para sobreviver. Isso está acontecendo", disse ele, sob anonimato.
Pressão para restabelecer o antigo sistema
Entre as exigências do Hamas nas negociações por cessar-fogo está a reabertura das fronteiras de Gaza e o aumento da ajuda humanitária —não apenas para aliviar a fome crescente, mas também para restabelecer o fluxo de caixa, segundo fonte próxima às negociações.
"Uma das razões para o Hamas querer o retorno ao sistema anterior é que eles têm gente em todos os depósitos", disse um diplomata ocidental. Funcionários do governo de Gaza permitem ao Hamas monitorar e tributar o comércio local, segundo um alto funcionário israelense.
Antes de outubro, quando os envios comerciais foram suspensos, o Hamas cobrava taxas na fronteira e confiscava cargas de quem se recusasse a pagar, vendendo-as a comerciantes locais, segundo um jornalista econômico de Gaza. Ele afirma que combustíveis e cigarros eram os itens mais lucrativos.
Um empresário de Gaza disse que a taxa chegava a 20% sobre vários produtos. O grupo também confiscava caminhões com itens populares, como farinha (vendida a até R$ 168 o quilo), e combustível destinado a ONGs. Segundo um oficial militar israelense, combustível armazenado em postos era apreendido e revendido.
Além das taxas, o Hamas permitia que comerciantes aliados vendessem itens básicos com preços inflacionados sem sofrer penalidades, segundo documento interno da organização obtido pelas Forças Armadas de Israel. O jornalista confirmou a prática e disse que o grupo, às vezes, retinha estoques propositalmente para forçar alta de preços.
Desde a retomada da guerra em março, as receitas do Hamas despencaram, com importações e entregas de suprimentos reduzidas ao mínimo. A criação da Fundação Humanitária de Gaza, em maio —iniciativa apoiada pelos EUA e Israel limitou ainda mais a arrecadação do grupo, apesar das mortes registradas nos locais de distribuição.
Repressão crescente
Com o aumento da pressão militar e financeira, o Hamas tem adotado medidas cada vez mais repressivas para demonstrar controle. Moradores relataram medo crescente de retaliações. Vídeos publicados por uma unidade ligada ao grupo mostram homens mascarados espancando e atirando nas pernas de acusados de roubar ajuda humanitária.
Pessoas em Gaza também relataram intimidação a críticos do grupo. Em junho, por exemplo, Mowafeq Khdour, de 31 anos, foi assaltado e espancado por dezenas de membros armados do Hamas após criticar o grupo publicamente, segundo seu irmão Mahmoud.
À medida que endurece sua política interna, a popularidade do Hamas cai, segundo Rami, funcionário do governo em Gaza. Ele afirma que o sentimento nas ruas é bem diferente do otimismo que predominava no início da guerra, quando "acreditávamos estar prestes a libertar a Palestina ou conquistar uma grande vitória".
"As ações de Israel são inegavelmente criminosas", disse Rami. "Mas o mau julgamento do Hamas e sua incapacidade de lidar com as consequências da guerra também contribuíram enormemente para esse desastre."