Criadas para enfrentar gangues que, segundo a ONU, controlam 90% de Porto Príncipe, as brigadas de autodefesa passaram a ocupar espaços que deveriam ser do Estado. Formadas por jovens que limpam ruas, recolhem lixo e tentam organizar a segurança, elas também impõem barreiras, cobram pedágios e decidem, por conta própria, quem vive ou morre.
"A ordem pública foi privatizada pelas gangues", resume o sociólogo Jean Casimir, da Universidade Estatal do Haiti. Na ausência de um Estado funcional, as brigadas ganharam apoio de autoridades locais e de parte da população, frustrada com um sistema judicial paralisado.
"As pessoas confiam nessas milícias porque a Justiça falhou, mas elas tendem a virar novas gangues", afirmou Marie Yolène Gilles, da ONG Fondasyon Je Klere (FJKL) ao jornal americano Washington Post.
Relatórios da ONU mostram que alguns desses grupos já cooperam com facções. No ano passado, um importante chefe de gangue, Jimmy "Barbecue" Chérizier apoiou vigilantes contra um rival. Em maio, milícias saquearam uma cidade do interior, incendiaram prédios e decapitaram fiéis; em novembro, juntaram-se à polícia no ataque a uma ambulância dos Médicos Sem Fronteiras.
"Embora muitas vezes atuem como os únicos mecanismos de segurança em várias áreas, eles violam direitos humanos fundamentais, incluindo o direito à vida e ao julgamento justo, além de alimentar ainda mais a violência", declarou Miroslav Jenča, secretário-geral assistente da ONU.
Missões internacionais prometeram segurança e fracassaram, avalia o antropólogo Rodrigo Bulamah em entrevista à Folha. Além disso, enfraqueceram o Estado abrindo espaço para o crescimento das gangues na capital, acrescentou Bulamah, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), especialista em Haiti e membro do projeto Realidades Latino-Americanas.
O assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, acelerou ainda mais essa expansão, que não pôde ser contida pelo governo de transição.
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No entanto, Bulamah, que acaba de voltar de uma pesquisa de campo no país, lembra que o colapso estatal não é homogêneo.
As brigadas não são novidade: após a queda das ditaduras de François "Papa Doc" Duvalier e seu filho Jean-Claude ("Baby Doc"), em 1986, multidões lincharam supostos integrantes dos Tonton Macoutes, a temida força paramilitar do regime. Além disso, muitos dos atuais chefes de gangue começaram como vigilantes nos anos 2000.
Mesmo assim, defensores dessas milícias afirmam que, sem elas, Porto Príncipe já teria sucumbido. "É um paliativo perigoso, mas inevitável enquanto o Estado não reagir", disse Pierre Ésperance, diretor da Rede Nacional de Direitos Humanos ao Washington Post.